O DOM ALUMIA, MAS O PECADO CEGA
- «O outro é um dom», «o pecado cega-nos», «a Palavra é um dom», são, por esta ordem, os subtítulos ou fios condutores com que o Papa Francisco costurou a sua mensagem para esta Quaresma de 2017 que agora se inicia. Entre «dom» e «dom», o pecado, que é uma espécie de nó cego no coração, bloqueia-nos num mundo de portas fechadas a cadeado, tornando-nos imunes, isto é, vacinados, indiferentes, insensíveis, face aos outros e face à Palavra, aquela que vem de Deus, Palavra criadora e carinhosa, e aquela que vem dos outros, da ternura dos outros, mas também das suas dores, sofrimentos e gritos.
- Sim, o dom é primeiro. A Palavra criadora de Deus está antes das coisas, da história e de mim. Ou não seria Palavra criadora! E ainda antes de mim estão outras mãos que me acolhem com carinho. É suficientemente claro que não fui eu o primeiro a chegar aqui. Diz Deus para Baruc e para mim: «Tu procuras para ti coisas grandes! Não procures! Porque eis que Eu farei vir a desgraça sobre toda a carne, oráculo do Senhor. Mas darei a ti a tua vida como despojo em todos os lugares para onde fores» (Jeremias 45,5). E João, o Batista, aponta a cada um de nós a fonte da vida e do dom, afirmando: «Um homem nada pode receber, a não ser que lhe tenha sido dado do céu» (João 3,27). E São Paulo deixa a retinir nos nossos ouvidos a pergunta essencial: «Que tens tu que não tenhas recebido?» (1 Coríntios 4,7).
- No Tratado Pirqê ’Abôt (2,9), da Mishna judaica, Yohanan ben Zakai pergunta aos seus discípulos: «Qual é o caminho mau de que o homem se deve afastar?». E Rabi Simeão respondeu: «Pedir emprestado e não restituir». Mas acrescenta logo que «é a mesma coisa receber emprestado de um homem ou de Deus». E o grande filósofo hebreu Abraham Joshua Heschel comenta de forma certeira e incisiva: «Talvez esteja aqui o núcleo da miséria humana: quando nos esquecemos de que a vida é um dom e também um empréstimo».
- Em boa verdade, quando dou por mim, já tenho coisas atrás, já estou sempre depois do meu nascimento, já tenho um pai e uma mãe, já sou filho. E reconhecer-me filho é descobrir-me como receção originária da vida, proveniente de um amor que me precede. Verdadeiramente, quando começamos a dar por nós, o espanto primeiro que nos invade não é o mundo, mas alguém que começamos a ver diante de nós. Alguém: o dom de outras mãos que amorosamente se estendem para nós. «A primeira experiência da pessoa, diz bem Emmanuel Mounier, é a experiência da 2.ª pessoa: o tu, e, portanto, o nós, vem antes do eu». O «bom dia» precede o «cogito». Nós não somos incestuosa e tautologicamente filhos de nós mesmos, como requer o célebre «cogito ergo sum» [= «eu penso, logo existo»] cartesiano ou o faraónico «ego feci memetipsum» [= «eu fiz-me a mim mesmo»] (Ezequiel 29,3). Eu não sou a origem, o senhor e o centro do mundo. «Eu» dou por mim como «eis-me-aqui», como tantas vezes na Bíblia se vê e ouve.
- Um dom imenso nos precede. Mas o dom é sempre frágil. É como um vaso cheio de afeto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Na verdade, não se possui senão para se perder, e só não se perde o que se dá. Aproveitemos então, caríssimos irmãos e irmãs, este tempo santo da Quaresma para fazer a experiência de tudo receber de Deus e tudo partilhar com alegria com os nossos irmãos, na certeza de que «Deus ama quem dá com alegria» (2 Coríntios 9,7; cf. Atos 20,35; Tobias 4,16).
- Façamos pois, amados irmãos e irmãs, do tempo da Quaresma um tempo de diferença, e não de indiferença. Dilatemos as cordas do nosso coração até às periferias do mundo, e que o nosso olhar seja de Misericórdia para os nossos irmãos de perto e de longe. Façamos um exercício de verdade. Despojemo-nos, não apenas do que nos sobra, mas também do que nos faz falta. Dar o que sobra não tem a marca de Deus. Jesus não nos deu coisas, algumas coisas para o efeito retiradas da algibeira, mas deu por nós a sua vida inteira. Dar-nos uns aos outros e dar com alegria deve ser, para os discípulos de Jesus, a forma, não excecional, mas normal, quotidiana, de viver. Como em anos anteriores, peço aos meus irmãos e irmãs das 223 paróquias da nossa Diocese de Lamego para abrirmos o nosso coração a todos os que sofrem aqui perto e lá longe.
- Neste sentido, vamos destinar uma parte da esmola da nossa Caridade quaresmal para o Fundo Solidário Diocesano, para aliviar as dores dos nossos irmãos e irmãs de perto que precisam da nossa ajuda, e são cada vez mais. Olhando para os nossos irmãos e irmãs de longe, vamos destinar outra parte do esforço da nossa Caridade para levar um pequeno gesto de carinho aos nossos irmãos e irmãs da África e da América Latina, mais concretamente de Moçambique e da Bolívia, países em que os Missionários Espiritanos têm missões que necessitam do nosso apoio. O motivo de este ano canalizarmos a esmola da nossa Caridade através dos Missionários Espiritanos reside no facto de a Província Portuguesa dos Missionários Espiritanos estar este ano de 2017 a celebrar 150 de presença em Portugal. Este caminho da nossa Caridade Quaresmal será anunciado, como de costume, em todas as Igrejas da nossa Diocese no Domingo I da Quaresma, realizando-se a Coleta no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor.
- Com a ternura de Jesus Cristo, saúdo, no início desta caminhada quaresmal de 2017, Ano do Centenário das Aparições de Nossa Senhora em Fátima, todas as crianças, jovens, adultos e idosos, catequistas, acólitos, leitores, salmistas, membros dos grupos corais, ministros da comunhão, membros dos conselhos económicos e pastorais, membros de todas as associações e movimentos, departamentos e serviços, todos os nossos seminaristas, todos os consagrados, todos os diáconos e sacerdotes que habitam e servem a nossa Diocese de Lamego ou estão ao serviço de outras Igrejas. Saúdo com particular afeto todos os doentes, carenciados e desempregados, e as famílias que atravessam dificuldades. Uma saudação de particular carinho a todos aqueles que tiveram de sair da sua e da nossa terra, vivendo a dura condição de emigrantes.
- Que o Deus da Paz nos conceda uma abundante chuva de Graça e de Ternura, e que Maria, nossa Mãe, Senhora do Rosário de Fátima, seja nossa carinhosa Medianeira.
Lamego, 1 de março de 2017, Quarta-feira de Cinzas
Na certeza da minha oração e comunhão convosco, a todos vos abraça o vosso bispo e irmão,
+ António
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