VAI, E FAZ TU TAMBÉM DO MESMO MODO
Em modo de filhos amados e de irmãos amados
1. «Deus é amor» (1 João 4,8 e 16) e «amou-nos primeiro» (1 João 4,19), e «nós amamos, porque Deus nos amou primeiro» (1 João 4,19). Então, o amor que está aqui, o amor que está aí, o amor que há em mim, o amor que há em ti, o amor que há em nós, «vem de Deus» (1 João 4,7), e «quem ama nasceu de Deus» (1 João 4,7). Deus amou-nos primeiro, ama-nos primeiro e continua a amar-nos sempre primeiro com amor-perfeito, no tempo e modo perfeito, que cobre toda a nossa história humana, isto é, amor preveniente, concomitante, consequente, fiel, permanente (1 Tessalonicenses 1,4; Colossenses 3,12). Ama-nos a nós, que estamos aqui agora, e foi assim que nós começámos a amar. Se não tivéssemos sido amados primeiro, e não tivesse chegado à nossa mão o testemunho desse amor, não teríamos começado a amar, e nem sequer estaríamos aqui no lugar e modo de filhos amados de Deus, porque «quem não ama, permanece na morte» (1 João 3,14), sendo então a morte, não o termo da vida, mas aquilo que impede de amar, e, portanto, de nascer para a vida eterna (zôê aiônios). Lugar e modo de filhos amados de Deus, temos então de aprender a desenhar uma casa-Igreja que seja um espaço relacional novo, uma «casa de família, fraterna e acolhedora» (São João Paulo II, Exortação Apostólica Catechesi tradendae [1979], n.º 67), onde todos possamos ensaiar viver e conviver «em modo de filhos amados e de irmãos amados».
Jesus Cristo, rosto humano de Deus e rosto divino do homem
2. Ao propormos hoje a caridade como modo de viver e de fazer no seio da nossa Igreja Diocesana de Lamego, em todas e em cada uma das suas 223 paróquias, começamos por fixar a nossa atenção nas palavras emocionadas e mobilizadoras que São João Paulo II deixou gravadas na sua Exortação Apostólica Christifideles laici [1988], n.º 34: «O homem é amado por Deus. Este é o mais simples e o mais comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao Homem». Trata-se, portanto, como bem disse o Concílio (Decreto ad Gentes, n.º 2), de sabermos pôr a nossa vida em sintonia com a torrente que brota do «amor fontal» de Deus Pai, da «caridade de Deus Pai», que atravessa o Evangelho, sendo, portanto o anúncio do Evangelho «a primeira caridade» para o mundo, como realça São João Paulo II, agora na sua Carta Apostólica Novo millennio ineunte [2001], n.º 50, seguido pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii gaudium [2013], n.º 199. Dito isto, fica claro que é Jesus de Nazaré o Rosto da Palavra e do Amor de Deus (Bento XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini [2010], n.º 12), e que, portanto, «A Igreja deve falar cada vez mais de Jesus Cristo, rosto humano de Deus e rosto divino do homem» (São João Paulo II, Exortação Apostólica Ecclesia in America [1999], n.º 67). E não apenas falar de Jesus, mas encontrar-se com Jesus, como refere, com preciosa precisão, o Papa Bento XVI, na sua Carta Encíclica Deus caritas est [2005], n.º 1, logo seguido pelo Papa Francisco, na Evangelii gaudium, n.º 7: «No início da vida cristã, não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com Jesus Cristo».
O texto e a sua configuração
3. É com este vivo desejo de oferecer a todos e a cada um dos amados filhos de Deus da nossa Diocese de Lamego um verdadeiro encontro com Jesus Cristo, que com o seu rosto ou viso repetida e carinhosamente nos visita (cf. Lucas 1,68.78-79; 7,16: 19,44), que ofereço hoje a todos vós, amados irmãos e irmãs, para nos servir de guia de vida e de ícone para os olhos e o coração, uma das mais belas figuras da caridade, retratada por Jesus numa das suas mais belas e intensas histórias, que conhecemos como O BOM SAMARITANO, e que é necessário ler com docilidade e espírito aberto, prestando atenção ao texto e à sua configuração. Trata-se de Lucas 10,25-37:
«10,25E eis um doutor da lei (nomikós), que se levantou para lhe armar um laço (ekpeirázô), dizendo: “Mestre, o que (tí) fazendo (poiêsas) herdarei a vida eterna?”. 26Ele, então, disse-lhe: “Na Lei, o que (tí) está escrito? Como (pôs) lês?”. 27Ele, então, respondendo, disse: “Amarás o Senhor, o teu Deus, com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com todas as tuas forças, e com toda a tua inteligência, e o teu próximo como a ti mesmo”. 28Disse-lhe, então: “Respondeste bem; faz isso, e viverás”. 29Ele, então, querendo justificar-se, disse para Jesus: “E quem é o meu próximo?”. 30Respondendo, Jesus disse:
“UM HOMEM descia de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos ASSALTANTES que, depois de o roubarem e espancarem, se foram embora deixando-o meio-morto (hêmithanê). 31Por coincidência, descia por aquela estrada UM SACERDOTE que, ao vê-lo (idôn autón), passou pelo lado oposto (antiparêlthen). 32Do mesmo modo, também UM LEVITA, chegando ao lugar (katà tòn tópon elthôn), e vendo (idôn), passou pelo lado oposto (antiparêlthen). 33Mas UM SAMARITANO, que ia de viagem, veio junto dele (êlthen kat’ autón), e vendo (idôn), foi tomado de misericórdia (esplagchnísthê). 34E tendo-se aproximado (proselthôn), enfaixou as suas feridas derramando óleo e vinho, colocou-o sobre o seu jumento, levou-o para uma hospedaria (pandocheîon = pâs-déchomai) e cuidou dele. 35No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao HOSPEDEIRO (pandocheús) e disse: “Cuida tu dele, e o que gastares a mais, quando eu voltar, pagar-to-ei”.
36Destes três, quem te parece ter sido o próximo daquele que tinha caído nas mãos dos assaltantes?”. 37Ele, então, disse: “O que fez misericórdia com ele”. Disse-lhe, então, Jesus: “Vai, e faz tu também do mesmo modo”» (Lucas 10,25-37).
O texto apresenta-se claramente desenhado em duas tonalidades: 1) a história ou parábola propriamente dita, contada por Jesus, cuidadosa e preciosamente guardada no centro do texto, nos versículos 30b-35, e que constitui, por assim dizer, o quadro central para o qual devem estar sempre voltados os nossos olhos e o nosso coração; 2) a moldura ou caixilho, que se estende ao redor do quadro, emoldurando-o, e que é composta pelos versículos de abertura (25-30a) e do fecho (36-37).
Passar simplesmente ao lado
4. Fixando os olhos no quadro desenhado por Jesus bem diante dos nossos olhos, somos obrigados a ver aquele UM HOMEM assaltado, roubado, espancado e abandonado como um dejeto à beira da estrada. Mas a narrativa não se demora aí. Corre rápida e vertiginosa como aquela estrada que vertiginosamente descia de Jerusalém para Jericó, serpenteando o Wadi el-Kelt, numa distância de 27 km e um declive de 1100 metros. Eis, portanto, já, no nosso ângulo de visão, um SACERDOTE que descia… Súbita desilusão. O narrador refere que o SACERDOTE bem viu o nosso homem, mas passou pelo lado oposto (antiparêlthen). Evitou demoras, chatices, incómodos, impureza ritual. Eis já, no entanto, outra possibilidade: um LEVITA... A mesma desilusão. Também ele bem viu o nosso homem, mas passou pelo lado oposto (antiparêlthen). Nas suas palavras serenas, mas cortantes, de dois gumes, como o bisturi da Palavra de Deus (cf. Hebreus 4,12; Apocalipse 1,16), o Pai Américo já nos advertiu, no seu tempo, que também nós, se não amarmos verdadeiramente os nossos irmãos, podemos ficar na história como aqueles que simplesmente passaram ao lado!
Proximidade sem preconceitos
5. A narrativa atinge o seu auge. Eis já, no horizonte, um SAMARITANO, lídimo representante daquele «estúpido povo que habita em Siquém» (Ben-Sirá 50,26), mas que vai fazer tudo ao contrário dos dois anteriores, representantes credenciados da religiosidade fria, formal e oficial de Jerusalém. Agora sim, alenta-se a narrativa, para que possamos ver bem, ponto por ponto, e em contraponto, o fazer do SAMARITANO. Anotemos então: (1) veio até junto dele, (2) viu-o, (3) foi tomado de misericórdia, (4) aproximou-se, (5) enfaixou as suas feridas, (6) derramou óleo e vinho, (7) colocou-o no seu jumento, (8) levou-o para uma hospedaria, (9) cuidou dele, (10) deu dois denários ao hospedeiro, (11) e disse-lhe: «Cuida tu dele».
6. Postas diante dos nossos olhos as diferentes figuras e respetivos gestos ou trejeitos, é forçoso que nos apercebamos logo da principal diferença que habita o seu modo de fazer. O SACERDOTE e o LEVITA bem veem, começam mesmo por ver o HOMEM meio-morto descartado na valeta. E é mesmo por o verem, que optam por se distanciar dele, passando pelo lado oposto da estrada, isto é, pela outra valeta. Eles bem veem, mas não veem bem, estão eivados de preconceitos. E o que verdadeiramente os move são os seus preconceitos. De forma aguda e penetrante, acertadamente diz a sabedoria oriental que três quartos do que vemos está atrás dos nossos olhos! É a presença da trave na nossa vista, apontada por Jesus no Evangelho, e que não nos deixa ver bem (cf. Mateus 7,3-5). É preciso reparar com mais atenção nos movimentos do SAMARITANO. Começa por vir até junto do Homem meio-morto (1), e só agora é que vê (2), e é movido pela misericórdia (3), e aproxima-se ainda mais até lhe tocar (4). Nenhum preconceito guia o fazer deste Samaritano. Não vê à distância, de forma egocêntrica e enviesada, através do filtro dos seus preconceitos. Vem junto daquele homem, aproxima-se dele, e só agora, de bem perto, é que vê bem, e é levado a fazer misericórdia, que é o que a Palavra de Deus manda fazer sempre já, ainda antes de pensar e de deixar vir à mente qualquer desculpa ou preconceito. É ainda belo ver que este samaritano é um cuidador, no sentido moderno da palavra. E que passa nas nossas estradas, como quem está de visita boa e bela, e que nos implica neste belo trabalho do amor [= «Cuida tu dele!»]. Todo o fazer do samaritano tem o sabor do excesso e da maravilha. A sua história termina assim: «Quando eu voltar, pagar-te-ei». Mas esta é, como sabemos, a assinatura de Deus, como se pode ver nas parábolas do Reino (cf. Mateus 24,15 e 19). E o tempo e os irmãos que nos deixa nas mãos são a graça da missão que nos confia.
7. É impressionante notar que o narrador tenha necessitado de pouco mais de cem palavras, ao todo 106, incluindo artigos e partículas gramaticais (cf. Lucas 10,30b-35), para criar o quadro inesquecível que acabámos de apreciar. Penso que, neste momento, nesta curva da estrada, amados irmãos e irmãs, já todos percebemos que esta história contada por Jesus, este quadro divino, não pode mais sair dos nossos olhos e do nosso coração! É claro, além disso, que nos deixa nas mãos um braçado de trabalhos: 1) nenhum preconceito, ainda que possa ser por nós considerado uma boa desculpa, pode distanciar-nos dos nossos irmãos; 2) o olhar do nosso coração não pode estar barrado por nenhuma espécie de trave; 3) a misericórdia é para fazer já, sem qualquer demora ou justificação, por mais civilizada que nos pareça; 4) somos cuidadores, e temos a missão de provocar outros a sê-lo também; 5) estamos conscientes da missão que nos foi confiada, e que devemos realizar desde agora até que o Senhor venha («quando Eu voltar»).
Tudo à minha volta
8. Mas também é necessário passarmos os olhos pela moldura ou caixilho do quadro. Aí, o interlocutor de Jesus sou eu, que visto a pele de DOUTOR DA LEI (nomikós), autossuficiente, autorreferencial, centrado (ou sentado) em mim mesmo. Vê-se isto tão bem, é tudo tão claro, que até se vê que desenhei um círculo à minha volta, para que ninguém, exceto aqueles a quem eu o consentir, ouse entrar no meu mundo e perturbar o meu sacrossanto sossego. Na verdade, eu também sou muitas vezes como o doutor da lei centrado em si mesmo, que agora se levanta, não por respeito a Jesus, mas para sorrateiramente pôr Jesus à prova, isto é, para lhe armar um laço (e aí está outra vez o círculo fatal), como diz o verbo grego ekpeirázô. E o facto de perguntar depois explicitamente: «Quem é o meu próximo?», supõe já a pergunta implícita: «Quem não é o meu próximo?», e aí estou eu outra vez a traçar um círculo mais ou menos fechado ou mais ou menos aberto à minha volta. Sempre à minha volta, porque eu continuo a pensar que sou o centro do mundo!
A leitura divina da Escritura
9. Ao levantar-se para interrogar Jesus, o doutor da lei é logo apresentado, não com um olhar puro, mas embotado e enviesado. A pergunta é bela e boa, mas a intenção com que o doutor a formula está cheia de má-fé. Ele quer saber o que fazer para herdar a vida eterna. Entenda-se: ele quer saber o que fazer para se vir a tornar filho de Deus, filiação divina (hyiothesía) por graça recebida (Romanos 8,15-16; Gálatas 4,5; Ef 1,5), herança recebida e a receber (cf. Romanos 8,17; Gálatas 4,7). Mas o seu tom de voz e o seu olhar malicioso são gestos iguais aos do tentador, que também faz perguntas para tentar (ekpeirázô) Jesus (cf. Mateus 4,1.3). Jesus percebe a armadilha do doutor, e fá-lo cair nela, pois obriga o doutor a responder à sua própria pergunta, perguntando-lhe, por sua vez: «O que (tí) está escrito (gégraptai: perf. pass. de gráphô)? Como (pôs) lês?». «O que está escrito» implica o dedo de Deus. Portanto, a Escritura Santa. O «como lês?» implica que a Escritura deixe de ser um mecanismo preguiçoso, e entre, como uma avalanche, nos ouvidos e no coração do doutor, e os limpe (João 15,3). Não basta saber que existe a Escritura Santa, e acomodá-la na estante. É preciso lê-la, amá-la, saboreá-la. Só assim, a Escritura se faz Palavra viva e eficaz e nos dá a vida nova de Deus, concedendo-nos mesmo indulgência parcial ou plenária (Bento XVI, Verbum Domini, n.os 86-87). Afinal, ele sabia responder, e respondeu: «Amarás a Deus […] e ao teu próximo», citando, numa bela harizah, Deuteronómio 6,5 e Levítico 19,18. Jesus confirma que respondeu bem, e acrescentou: «Faz isso, e viverás», talvez citando o Levítico 18,5. Ficou envergonhado o doutor, pois teve de se ver apanhado na armadilha que ele próprio montou! Portanto, o doutor continua a ver-se dentro de um círculo. Mas este, em que agora está metido, não foi ele que o traçou. Foi Jesus que o ensarilhou. Por isso, para tentar uma saída airosa para o embaraço em que ele próprio se meteu, como que para se justificar a si mesmo (dikaióô heautón) (cf. Lucas 10,29), o doutor põe agora a Jesus uma questão académica, de discussão interminável entre especialistas nas escolas e na sinagoga, em que todas as posições eram possíveis. Portanto, é ainda à sua volta que o doutor continua a ver o mundo. «E quem é o meu próximo?», é a questão. As respostas são tantas quantas as pessoas envolvidas no plano inclinado da escorregadia discussão. Na verdade, como se vê, tratar-se-ia sempre de cada interveniente poder traçar um círculo mais ou menos fechado ou mais ou menos aberto à sua volta.
Da escola para o caminho, do saber para o fazer
10. É muito significativo que Jesus, com o recurso à parábola, tenha sabido e querido deslocar para a estrada, para o caminho, para a praça pública, as questões que eram habitualmente discutidas nas escolas ou na sinagoga entre especialistas. E assim, desde o princípio, tudo, no texto, se joga sobre o fazer, e não sobre o saber, como seria de esperar na mente do doutor. E é assim que o doutor da lei, que abre o diálogo com Jesus (Lucas 10,25), foi pedagogicamente conduzido por Jesus a saber talvez mais do que queria fazer, e talvez menos do que queria saber. A história que Jesus conta ao doutor, e que já apreciámos no quadro central, não deixa escapatória. No final da história, Jesus pergunta ao doutor, olhos nos olhos: «Destes três, quem te parece ter sido o próximo daquele que tinha caído nas mãos dos assaltantes?» (Lucas 10,36). Ao ver-se dentro da realidade, e fora da possibilidade de qualquer discussão académica, o doutor teve de responder de forma frontal e direta: «O que fez misericórdia com ele» (Lucas 10,37a). E aí está então a estocada final de Jesus no doutor cheio de preconceitos: «Vai, e faz tu também do mesmo modo» (Lucas 10,37b).
11. Aí está então, aberta diante de nós, amados irmãos e irmãs, a avenida do amor e da caridade. É este o tempo da graça que Deus, que é amor e nos ama, nos concede para rompermos todos os círculos mais ou menos fechados, mais ou menos abertos, que fomos traçando à nossa volta, para excluirmos, com diplomacia, os nossos irmãos. Este ano dedicado à prática da caridade é também o tempo oportuno para nos desfazermos de todos os preconceitos que têm barrado o acesso afetuoso aos nossos irmãos doridos ou já «em coma», descartados e abandonados à beira da estrada, ou talvez mesmo à beira da nossa casa (cf. Lucas 16,20), e que nós já nos habituámos a não ver por causa das traves que se apoderaram do nosso olhar, e o embaciam. Por vezes, parece mesmo que andamos com uma certa esquadria nos olhos, no coração e nas entranhas, uma espécie de anestesia que nos esvazia de humanidade e de divindade, e esquecemo-nos que somos seres humanos, frágeis e de existência breve, teus servos, filhos da tua serva (cf. Sl 116,16). Habitados pela cultura da indiferença e insensibilidade que atravessa a nossa sociedade, por vezes já nem nos apercebemos que as pessoas são carne e osso, e doem. Verdadeiramente, nesta sociedade adormecida, não é o cogito que está «em coma», como diria Émmanuel Levinas. É o ser humano que está «em coma».
12. Caríssimos irmãos e irmãs, é preciso, portanto, uma nova cultura, em que o ser humano, desde a sua conceção até à sua morte, não seja considerado uma coisa, mais uma coisa e muito menos uma coisa a mais, mas um ser humano, único e irrepetível, filho amado de Deus e meu irmão querido, que me pede, e a quem eu devo, todo o meu afeto e dedicação. Para que seja grande e intensa esta torrente de amor, convoco todos os diocesanos da nossa Diocese de Lamego: sacerdotes, diáconos, consagrados, consagradas, fiéis leigos, pais, mães, avôs, avós, famílias, jovens, crianças, catequistas, acólitos, leitores, agentes envolvidos na pastoral, membros dos movimentos de Apostolado, Centros Sociais Paroquiais, Misericórdias, e todas as pessoas e instituições envolvidas no «trabalho do amor» (1 Tessalonicenses 1,3). A todos peço a graça de promoverem mais alegria, mais caridade, mais fraternidade. A todos peço a dádiva de uma mão de mais amor a todos os irmãos e irmãs que experimentam dificuldades e tristezas, dores, doenças, solidão, luto e cansaço. A todos peço que experimentemos a alegria de sairmos mais de nós ao encontro de todos, para juntos celebrarmos o grande amor que Deus tem por nós e sentirmos a alegria da sua misericórdia infinita. Que cada um de nós sinta como sua primeira riqueza e dignidade a de ser filho de Deus com muitos irmãos à sua volta. E para todos imploro de Deus a sua bênção, e de Maria, nossa Mãe, a sua proteção carinhosa e maternal.
Decálogo da Caridade
13. Anexo a esta Carta Pastoral o «Decálogo da Caridade», que retiro, com gratidão, das últimas páginas do livrinho de D. Bruno Forte, Arcebispo de Chieti-Vasto (Itália), intitulado Piccola introduzione alla Carità, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2017. Do final do mesmo livrinho retiro também, sempre com gratidão, a oração que encerra esta Carta Pastoral, e nos pode ajudar a viver, saborear e fazer a caridade.
1. A escolha dos pobres. O II Concílio do Vaticano, com a atenção que prestou à «Igreja dos pobres», levou à descoberta do pobre em toda a sua dignidade de pessoa humana, que há que promover e servir. Cristo, que revelou o homem ao homem (Gaudium et spes, n.º 22), quis ser pobre e faz-se presente nos pobres que nos chama a amar, vivendo este empenhamento como escolha prioritária de cada um e de toda a Igreja (Cf. Mateus 25,31-46).
2. A escolha da pobreza. Pôr-se ao serviço dos pobres implica a partilha da sua vida, «estar com eles» antes mesma de «ser para eles». Daqui nasce a exigência de uma Igreja pobre e serva dos pobres, sem pompa e liberta das seduções da riqueza e do poder. Uma Igreja em estado de permanente reforma («semper renovanda», «semper reformanda», como pede o Concílio), cujos filhos, escolham, a todos os níveis, como estilo de vida a sobriedade, a simplicidade, a humildade e a companhia dos últimos, nas suas necessidades e sofrimentos.
3. A Igreja da caridade. Igreja dos pobres, chamada a ser também ela pobre, a Igreja reconhece na caridade feita serviço a razão das suas escolhas fundamentais e a prova da sua pertença a Cristo. Diz-me como vives a caridade para com o pobre, e eu dir-te-ei que Igreja és! A caridade é constitutiva do ser eclesial e é necessário exprimir-se quer na comunhão entre os batizados, a todos os níveis, quer nas formas mais diversas de serviço ao próximo.
4. O pobre, sujeito eclesial. Os pobres não devem ser considerados apenas como destinatários privilegiados da ação caritativa da Igreja, mas também como sujeitos eclesiais, primeiros protagonistas do seu agir de seres humanos e de cristãos. Dê-se, pois, atenção aos pobres, aos pequeninos, aos frágeis, aos jovens, aos velhinhos, às famílias em dificuldade, a todos os níveis de participação na vida eclesial.
5. O primado da caridade na vida da Igreja. É necessário viver o primado da caridade na Igreja, desde a paróquia, à zona pastoral, ao arciprestado, à diocese, em todas as expressões da sua vida. Compreende-se a esta luz a missão pedagógica da comunidade cristã, chamada a formar todos os batizados na tarefa caritativa como própria e caraterística do ser cristão, na escuta da Palavra de Deus e na força que irrompe dos sacramentos da fé.
6. As obras-sinal. As obras-sinal, levadas a cabo particularmente pela Caritas paroquial, da zona pastoral, arciprestal ou diocesana, ou em colaboração com ela, na sua criação como na sua atividade ordinária, sejam expressão da ação voluntária, com a colaboração mais alargada possível de todos os batizados e de todos os homens e mulheres de boa vontade. Considerem-se e sejam postos em contato com aquele estímulo de sensibilização para os desafios da pobreza e escola de educação para o voluntariado, que deve ser descoberto como valor intrínseco da vida cristã e de todos aqueles que se queiram realizar como pessoas segundo o desígnio de Deus. A atenção às linguagens e aos meios de comunicação para transmitir estra mensagem revela-se decisiva.
7. O acolhimento. Os «centros de escuta», tanto a nível diocesano, como nas zonas pastorais, arciprestais, e nas paróquias em que existam, sejam efetivos lugares de acolhimento, de escuta, de acompanhamento das pessoas em dificuldade, no pleno respeito da sua dignidade, com a finalidade de conhecer e realizar o projeto que Deus, no seu amor, tem para cada pessoa, permitindo-lhe integrar-se plenamente na vida da comunidade.
8. Os presbíteros e a caridade. Enquanto ministros da unidade da Igreja, os presbíteros, sobretudo os párocos, deem privilegiada atenção à Caritas como sujeito pastoral, decisivo para a formação da comunidade e de cada um dos batizados na caridade. É importante que eles reconheçam como dever que deriva da sua própria identidade e missão, o empenho em promover, sustentar e fazer conhecer a Caritas, em todas as vertentes da sua ação.
9. Os diáconos, os religiosos e a caridade. Quem foi chamado ao diaconado, lembre-se que, desde as origens, a Igreja confiou aos diáconos o serviço das mesas, expressão e símbolo do exercício assíduo e perseverante da caridade, e se empenhe a seguir e sustentar todas as atividades inspiradas pela caridade. O mesmo se diga dos religiosos e religiosas, chamados a imitar Cristo na pobreza, e a amá-lo servindo de modo particular os pobres.
10. Os batizados e a caridade. Toda a Igreja é chamada a anunciar o Evangelho todo a toda a pessoa humana, a cada pessoa humana. Este anúncio é inseparável do empenho caritativo de cada batizado. Sinta-se cada um chamado a colaborar nas iniciativas da caridade na medida das suas capacidades e possibilidades. O mesmo façam todas as associações e movimentos eclesiais. É também deste modo que se responde ao convite de Jesus: «Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto, todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (João 13,34-35).
Deus, Pai de misericórdia,
que revelaste o teu amor infinito
no teu Filho, Jesus Cristo,
feito homem por amor de nós,
dá-nos a graça de experimentar o teu amor,
tão profundamente
que nos venhamos a tornar nós próprios
testemunhas e operadores de caridade
para todos aqueles a quem nos envias,
e que nos confias.
E que Maria, Mãe do mais puro e belo Amor,
interceda por nós,
para nos ajudar a viver a caridade
com fé e coração generoso
em cada escolha e em cada tempo
da nossa vida,
dóceis à ação do Espírito,
sopro do eterno Amor.
Amen!
Lamego, 30 de setembro de 2017, Memória de São Jerónimo, Presbítero e Doutor da Igreja
+ António, vosso bispo e irmão
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