segunda-feira, 2 de junho de 2014

Evangelii Gaudium – Anunciar a luz em tempos de escuridão porque somos bem-aventurados

 Texto de intervenção do jornalista Jorge Wemans na paróquia de Santa Isabel (Lisboa), 12 de março de 2014.

          Não sou perito em análise de documentos do Vaticano nem tenho qualquer outra competência específica para me debruçar sobre a exortação Evangelii Gaudium. Reajo a ela na minha qualidade de católico comum. Tal como qualquer outro. Embora, ao contrário de uns quantos, sentindo que estamos perante um documento de uma novidade inescapável. Um documento que nos exige definir com urgência e convicção as prioridades da nossa comunidade para os próximos anos.
Partilho estas minhas reflexões sem esquecer os muitos “comentários” já tornados públicos com aquele objetivo referido pelo Papa Francisco (nº 271): desenvolver interpretações que despojam a exortação da sua força interpeladora, do seu caráter claro e contundente!
Por nada deste mundo gostaria de fazer parte desse grupo, mas tenho algum receio de o integrar, mesmo não o querendo. E o problema não será meu, é, isso sim, da própria exortação. Ela é, sem dúvida nenhuma, um texto claríssimo e contundente, mas também profundamente interpelador e muitíssimo exigente. Não admira que, dentro e fora da Igreja, se tenham multiplicado os comentários tentando tornar velho o que ela tem de novo (e tem tanto!), ou nebuloso o que ela tem de límpido como água – na realidade, ninguém gosta de ser questionado nas suas autojustificações e de ser desassossegado do doce remanso em que todos tendemos a nos deixar adormecer. Espero com este comentário nada retirar à exortação no que ela tem de direto, contundente e de convite à mudança!

Inesgotável

A primeira caraterística da Evangelii Gaudium que quero salientar é a de ela ser inesgotável, assim como um imenso banquete que convida a que seja lida devagar e a ser meditada em cada um dos seus 288 pontos.
Talvez mais do que um banquete, possamos comparar a exortação a uma paisagem em que descobrimos sempre coisas novas de cada vez que a voltamos a contemplar, uma paisagem em que vislumbramos em diversos lugares os mesmos verdes, ou os mesmo tons de azul, os quais, embora repetindo-se não são repetitivos, pois em enquadramentos diferentes acabam por não ser exatamente os mesmos verdes ou os mesmos azuis.


A paisagem é também uma boa metáfora para falarmos da exortação, porque, tal como aquela, esta também tem a caraterística da profundidade. O seu autor é culto, muito culto, profundamente culto. Ou seja, é capaz de expressar em frases simples e inteligíveis por todos o seu diálogo com os autores contemporâneos mais significativos, de intervir com relevância nos grandes debates culturais atuais sobre o homem e o seu destino, a sociedade e a sua governação, a sustentabilidade do planeta e a sua justa fruição, o lugar, a importância e a função da cultura, a relação homem-mulher, o absurdo e o mistério como chaves de significação da aventura humana, o amor, o belo, a criação e a criatividade…
Esta não é, pois, uma exortação plana, a duas dimensões. É verdadeiramente um documento a três dimensões, um escrito que nos envia para muito longe, muito fundo.
Foi reagindo a esta radicalidade e para evitarem a funda exigência que ela comporta – que, não o nego, provoca algum receio e desperta temor – que surgiram comentários sublinhando a figura simples do autor, sugerindo subliminarmente tratar-se de um simplório desconhecedor das graves e pesadas realidades deste mundo complexo.
Creio que este é um grave pecado contra o Espírito. Como sabemos, o mais grave dos pecados contra Deus: tentar riscar do mapa as vozes, os lugares, os modos e os atos pelos quais Deus se nos revela. Fugir às radicais questões que a exortação nos coloca (a cada um de nós como cristão e cidadão e à igreja como comunidade evangelizadora), fingindo não as ver, usando a simplicidade com que é escrita para evitar enfrentar a complexidade do que ela trata – é pecado grave.
São Francisco também deve ter sido evitado, posto de parte, menorizado, olhado com desconfiança por muitos do seu tempo socorrendo-se de argumentos semelhantes!..

Carregada de novidade

Marcados pelo mesmo pecado contra o Espírito são os comentários que garantem não se encontrar aqui nada de novo. Pois eu encontro nela muita novidade!
Para não ser longo, refiro essa novidade em quatro áreas:
– Novidade externa: nos últimos seis anos de crise financeira, social e económica, o mundo mudou muito, muitíssimo, e este é o primeiro texto papal que se debruça, analisa, critica essas trágicas mutações à luz do Evangelho, usando palavras novas para designar realidades novas;
– Novidade autoral: a exortação tem um autor, não um “nós” majestático, mas um “eu” que não invade narcisicamente o texto antes se apresenta na primeira pessoa como alguém agradecido à vida de outros, a Deus que o salva, à Igreja, a Jesus Cristo seu companheiro e conforto;
– É uma meditação, não uma definição de regras ou um preceituário de normas a cumprir. É uma verdadeira exortação a vivermos na alegria do ressuscitado, na confiança que nos faz perder os medos, deixarmos calculismos e taticismos, a cantarmos a sabedoria do Magnificat: Deus olha para nós, seus seres, faz em nós maravilhas e preenche as nossas vidas pois não se esquece daquilo que desde o princípio dos tempos nos prometeu;
– Não prega a coragem, é corajosa; não prega a confiança, confia. De tal modo que põe tudo em causa em função de Deus, da missão.

Eu acho esta novidade uma coisa extraordinária. Nos tempos que correm, surgir alguém, um Papa, que se abeira de nós e nos diz: olha, o mundo está dominado por dinâmicas de morte e exclusão que fazem escurecer o horizonte, mas eu, Francisco, sinto-me filho da alegria, da boa-nova mais atual do que nunca e acho que está na hora de te pores a percorrer este caminho que é o do teu, do nosso, encontro com os outros e contigo próprio, com Jesus Cristo, vamos lá embora! Extraordinário convite! Em si mesma a Evangelii Gaudium, pelo que nos ensina e pelo convite que encerra, é um bem imenso, uma verdadeira bênção!
Há vários tipos de textos: legislativos, doutrinários, poéticos, compêndios de orientação e comportamentos. Este é outra coisa de mais significativo: é uma meditação sobre a atualidade de Jesus e a sua atenção misericordiosa sobre o nosso presente que nos convida a proclamar a verdade meditada como boa-nova alegre para todos.

Sobre o que é esta exortação?
Sobre a alegria? 
Sobre a economia?
Sobre a situação do planeta?       
Sobre a doutrina social da Igreja?
Sobre a centralidade dos pobres na vida da comunidade cristã?

Não, não é sobre nada disso, embora de tudo isso nos fale. É sobre a Evangelização, sobre essa que sendo a missão da Igreja é a sua razão de ser, é o seu porquê. Evangelização que é boa-nova e, portanto, alegria, mas que Francisco sublinha permanentemente, não é só, apenas ou principalmente um discurso. É um modo de ser. Cada um de nós não contribui para a Evangelização pelo que diz ou pelo que pensa, mas mais pelo que é. E o mesmo dirá da Igreja, da comunidade: ela não dá a conhecer Jesus por falar Dele, mas por ser como Ele.
Exigente, não? Radical, talvez?

A quem se dirige?

Dirige-se aos bispos, padres, pessoa consagradas e aos leigos. “À malta de dentro”.
Outras cartas, outros documentos virão em que o Papa Francisco se dirigirá a todos os homens e mulheres de boa-fé. Mas esta sua primeira palavra é para os irmãos na fé católica, apostólica, romana.
E, apesar de ser para os irmãos na fé, o texto do Papa Francisco teve um imenso impacte fora do espaço católico! Porquê? Porque – e volto ao mesmo – nela se olha com misericórdia para a situação da humanidade, pois a razão de ser da nossa comunidade é o Reino que é preciso ir anunciando e construindo no mundo.
Francisco escolheu falar em primeiro lugar à sua Igreja, dizendo-lhe que é inadiável [nº 27] mudar, mudá-la, e dizer-nos quais são os aspetos a mudar de forma mais urgente e quais as referências fundamentais nesse caminho de mudança. E é muito veemente nessa urgência: “ (…) Apesar disso sublinho que aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples administração. (…)» [nº 25].

O que pretende?

Pretende provocar em nós uma nova compreensão do que é a evangelização hoje, da sua urgência e centralidade no nosso ser igreja, de quanto precisamos de mudar o nosso modo de ser pessoal em pequena comunidade e na igreja no seu conjunto.
Mas é também um premente convite a que tracemos as nossas prioridades e desenhemos o caminho concreto que queremos seguir. Esta não é a tarefa do Papa e ele di-lo expressamente. Esta é a parte da exortação que fica para nós escrevermos.

Do meu ponto de vista os eixos urgentes de mudança da nossa Igreja são os quatro que trato em seguida. Como o nosso bispo [o patriarca de Lisboa] nos convocou para o sínodo a realizar em 2015, por mim, gostaria de ver estes vetores como a nossa Agenda em direção ao dito sínodo diocesano:

Acolher, integrar – A Igreja é para todos, não para os que já cá estamos. Acolher com misericórdia. Só consegue acolher quem é vista como acolhedora. “Está aqui um problema!” Temos de meter o dedo em riste no bolso e darmos sinais de que não somos autossuficientes: precisamos dos outros, não estamos completos sem outros, sem os diferentes, os mais diferentes. Como dar passos significativos para sermos vistos por todos como comunidade em que cada um se possa dizer naquilo que é sem ser olhado de modo repressor, mas sim acolhido para nos pormos em caminho de conversão?
A Igreja tem de deixar de ser vista como “esse lugar a que vais fazer umas rezas” para passar a ser vista como “esse grupo de amigos com quem te juntas para se recordarem de cada um de nós e meditarem sobre o que podem fazer para que todos tenhamos a vida em abundância, esses teus amigos sempre dispostos a darem uma mão a quem vos pede ajuda.”

Realizar a democracia interna, fomentar a participação de todos – É urgente sair da menoridade dos fiéis católicos, tratar a vida da comunidade como assunto nosso, de todos nós. As questões centrais de fé não são referendáveis, sujeitas a voto democrático, mas essas raramente estão em causa. Porém, todos os dias estão em causa opções de administração, escolhas de caminhos, prioridades, protagonismos, modos de estar. Tudo isso é assunto suscetível de debate democrático, questão referendável, de procura em conjunto da melhor opção. A Igreja deve ser escola de participação, de implicação, de maioridade cidadã.

Cuidar dos pobres e tomar a palavra em seu nome. Em nome dos pobres, dos sem palavra, ou contra a palavra dos poderes. São muito poucas as vozes que falam em nome da Igreja Portuguesa. Temos de as multiplicar. Não podemos ficar em silêncio, a exclusão a que outros estão sujeitos não nos perdoará se ficarmos calados. Falar tendo consciência de que o tempo é superior ao espaço e portanto a primeira palavra perder-se-á… só depois de muitas palavras se criará o hábito de ouvir.
Para isto é preciso escolher (pensar, meditar) sobre quais são os três ou quatro núcleos de grandes questões essenciais que vamos ter em conta nos próximos cinco anos na prioridade do nosso olhar sobre a nossa freguesia, diocese, cidade, país, mundo.

Viver e comunicar a alegria da esperança – esperança é o que mais falta a uma humanidade soterrada pelos ditames do dinheiro e de que aparentemente ninguém cuida. Esperança que vem dos pequenos passos que conseguimos dar, concretizar; do que conseguimos ver nos acontecimentos e nos passos que outros dão. Esperança que se alimenta de tudo isso, mas que radica noutro lugar, radica na certeza de que Deus não nos abandona, Ele é companheiro das nossas vidas por mais duras que estas sejam, no interior das quais nunca nos deixa sozinhos.

Como ler?

Ler sempre com esta ideia matricial de dupla vertente. Por um lado: este texto não nos diz como fazer, está sempre a desafiar-nos [a mim, à comunidade] a ser. Por outro: este texto não é para os outros, é para mim, diz-me respeito diretamente a mim, mesmo quando está a meditar sobre a homilia é também sobre o meu modo de discorrer sobre a fé com outros que o texto fala.
Já que o Papa Francisco organizou a exortação em cinco capítulos, podemos, se vamos ler a exortação em grupo, seguir-lhe a proposta e lê-la em cinco etapas, cada uma dedicada ao seu capítulo.
O último é mais pequeno, mas é muito pessoal pelo que meditar sobre ele com tempo e de modo particular me parece muito oportuno. Por outro lado, este capítulo (e a exortação) termina com um hino / poema a Maria belíssimo. Esta Maria não é uma Mariazinha, nem uma mãezinha. É a mulher de fé humilde, alegre e jubilosa do Magnificat, essa que é hoje a oração mais difícil, mas mais necessária. Quando cantarmos em verdade o Magnificat seremos realmente evangelizadores, isto é, quando nos reconhecermos bem-aventurados (felizes) porque Deus faz em nós maravilhas e não esquece as suas promessas viveremos na alegria que é contagiante, que é boa-nova!
Acreditamos mesmo que Ele nos move e que não nos esqueceu?"
Fonte: aqui





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