O próximo dia 3 de dezembro, primeiro domingo do Advento, marca o início do Ano litúrgico, tendo o ano litúrgico anterior sido encerrado com a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. Como é o Ano B, toma-se geralmente como leitura do Evangelho na celebração litúrgica da Eucaristia dominical o texto de São Marcos.
Apesar de
escrito num grego simples e mesmo popular, o texto reveste-se de intenso
encanto literário, o que desmente a ideia de alguns que veem neste Evangelho
uma simples manta de retalhos com base em relatos soltos
de que Marcos seria herdeiro e fiel depositário.
A tradição
antiga, que remonta ao séc. II, atribui a obra do autor do segundo Evangelho canónico
a Marcos, identificado com João Marcos, filho de Maria, em cuja casa os
cristãos se reuniam para orar (vd At 12,12). Com Barnabé, seu primo, Marcos acompanha Paulo
durante algum tempo na primeira viagem missionária (vd At 13,5.13; 15,37.39) e depois aparece com ele, prisioneiro em Roma (vd Cl 4,10), mas liga-se mais a Pedro, que o trata por ‘meu
filho’ na saudação final da sua 1.ª Carta (1 Pe 5,13). Marcos terá escrito o Evangelho pouco antes da
destruição de Jerusalém, que aconteceu no ano 70 e talvez logo após o Apóstolo Paulo
ser martirizado por volta de 64 d.C.
Apesar
de não estar entre os discípulos originais de Jesus Cristo, Marcos ter-se-á
convertido posteriormente e tornou-se assistente do Apóstolo Pedro e pode ter
escrito seu Evangelho com base no que aprendeu com ele.
Marcos
e sua mãe, Maria, viveram em Jerusalém; sua casa era um local de reunião dos
primeiros cristãos (vd At 12,12). Marcos deixou Jerusalém para
ajudar Barnabé e Saulo (Paulo) em sua primeira jornada missionária (vd
At 12,25; 13,4-6.42-48).
Mais tarde, Paulo escreveu que Marcos estava com ele em Roma (vd
Cl 4,10; F1m 1,24) e
elogiou Marcos como companheiro, que era “muito útil para o ministério” (2Tm
4,11). Pedro
referiu-se a ele como “meu filho Marcos” (1Pe 5,13), sugerindo a proximidade do seu
relacionamento.
***
O livro, de
redação tersa e ritmo veloz com frases carregadas de grande dramatismo, reflete
a catequese que Pedro, testemunha presencial dos acontecimentos, espontâneo e
atento, ministrava à sua comunidade em Roma. É o menos extenso dos quatro livros
do Evangelho e situa-se no Cânon entre os dois mais extensos Mateus e Lucas e a
seguir a Mateus, o de maior uso na Igreja. Até ao século XIX, Marcos foi pouco
estudado e comentado, para não dizer praticamente esquecido. Santo Agostinho anacronicamente
considerava-o como um resumo de Mateus. Agora, é comum afirmar-se que todos os
outros Evangelhos, sobretudo os Sinóticos, supõem e utilizaram mais ou menos o
texto de Marcos, assim como o seu esquema histórico-geográfico da vida pública
de Jesus: Galileia, Viagem para Jerusalém, Jerusalém.
A
investigação aprofundada desde o século XIX, em torno da origem e da génese dos
Evangelhos, trouxe Marcos à luz da ribalta; hoje, é geralmente considerado o
mais antigo dos quatro, embora se creia que antes circulavam em folhas soltas
relatos e extratos de discursos escritos em aramaico tradicionalmente tidos
como “os ditos do Senhor”. Na verdade, a obra do evangelista supõe uma fase
mais primitiva da reflexão da Igreja acerca do Acontecimento Cristo, que a
originou; e só ele conserva o esquema da mais antiga pregação apostólica,
sintetizada em Atos 1,22: começa com
o baptismo de João (1,4) e termina com a Ascensão do Senhor (16,19).
Inicia-se repentina e dramaticamente e
mantém um ritmo rápido, relatando acontecimentos numa sucessão muito veloz.
Marcos usa com frequência os termos logo e imediatamente, devido ao efeito do ritmo rápido e de
ação. Apesar de mais de 90% do material de Marcos ser encontrado nos relatos de
Mateus e Lucas, os relatos de Marcos incluem detalhes adicionais que nos ajudam
a apreciar mais a compaixão do Salvador e a reação das pessoas ao Seu redor (vd
Mc 9,14-27 e Mt 17, 14-18).
Por exemplo, Marcos relatou a receção ampla e entusiástica do Salvador pelo
povo da Galileia e em outros locais no início de Seu ministério (vd
Mc 1,32-33.45; 2,2;3,7-9; 4,1).
E narrou cuidadosamente a reação negativa dos escribas e dos fariseus, cuja
oposição rapidamente passou de apenas ter pensamentos céticos (vd
Mc 2,6-7) para
conspirar a fim de destruir Jesus (vd Mc 3,6).
Entre
os temas importantes vêm as questões sobre quem era Jesus e quem entendeu a sua
identidade, bem como o papel do discípulo (diferente da multidão,
embora recrutado de entre as mais pessoas)
como alguém que precisa de “tomar a sua cruz e seguir Jesus” (Mc
8,34). Ademais, Marcos
é o único a relatar a parábola da semente que cresceu sozinha (vd
Mc 4,26-27), a cura
dum surdo na região de Decápolis (vd Mc 7,31-37) e a cura gradativa dum cego em
Betsaida (vd Mc 8,22-26).
Este Evangelho
contém pormenores – como citações traduzidas do aramaico, expressões latinas e
explicações dos costumes judeus – que parecem direcionados a um público de
romanos e pessoas de outras nações pagãs, bem como os que se converteram ao
cristianismo, mais provavelmente em Roma e por todo o Império Romano. Muitos
creem que Marcos pode ter estado com Pedro em Roma durante o período marcado
por duras provas de fé para muitos membros da Igreja que residiam em diversos
locais do Império Romano.
Um
terço deste Evangelho relata os ensinamentos e as experiências do Salvador
durante a última semana da sua vida terrena. Marcos prestou testemunho de que o
sofrido Filho de Deus finalmente triunfou sobre o mal, o pecado e a morte –
testemunho que significou que os seguidores do Salvador não precisavam de ter
medo, porque, ao enfrentarem perseguição, provações ou mesmo a morte, estariam
a seguir o Mestre. Deviam perseverar com confiança, sabendo que o Senhor os
ajudaria e que a suas promessas serão sempre cumpridas
***
Evidenciando
alguma pobreza de vocabulário e uma sintaxe menos cuidada, Marcos é parcimonioso
em discursos, apresenta apenas dois discursos de fôlego: o capítulo das
parábolas (cap. 4) e o discurso escatológico (cap. 13). Mas é exímio na arte de contar, apresentando muitas
narrações – o que faz com nítido realismo e sentido do concreto, enriquecendo
os relatos com pormenores e dando-lhes vida e cor. A este respeito, são típicos
os casos do possesso de Gerasa, da mulher com fluxo de sangue e da filha de
Jairo, no cap. 5. Presta especial atenção às palavras textuais de Jesus em
aramaico, por ex. “Talitha qûm” (5,42) e “Eloí, Eloí,
lemá sabachtáni” (15,34). E é de
referir o dia-tipo da atividade de Jesus, descrito na assim chamada “jornada de
Cafarnaúm” (1,21-34). De entre
as perícopas e simples incisos próprios de Marcos, menciona-se o único texto
bíblico em que Jesus aparece como “o Filho de Maria” (6,3), ao contrário dos outros que falam de Maria, mãe de
Jesus.
***
Pode
dizer-se, porventura de uma forma demasiado simples, que Marcos se torna
espectador com os leitores acompanhando-os na realidade ora normal ora
surpreendente. Como eles, acompanha e vive o drama de Jesus de Nazaré,
desenrolado em dois atos, coincidentes com as duas partes deste Evangelho. Ao
longo do primeiro, vai-se perguntando: Quem
é Ele? E Pedro responderá por si e pelos outros, de forma direta e
categórica: “Tu és o Messias!” (8,29). O segundo ato pode esquematizar-se com
pergunta-resposta: De que maneira se realiza Ele, como Messias? Morrendo e
ressuscitando (8,31; 9,31; 10,33-34).
Este
Evangelho apresenta, assim, uma Cristologia simples e acessível: Jesus de
Nazaré é verdadeiramente o Messias que, pela Morte e Ressurreição, demonstrou,
como o reconheceu o centurião romano, ser verdadeiramente o Filho de Deus (15,39) que a todos possibilita a salvação. “Pois também o
Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por todos” (10,45). Foi esta
a finalidade da sua encarnação.
Este plano é
desenvolvido ao longo das 5 secções em que podemos dividir o Evangelho de Marcos,
segundo a Bíblia dos Capuchinhos: I. Preparação do ministério de Jesus
(1,1-13); II. Ministério na Galileia (1,14-7,23); III. Viagens por Tiro, Sídon e a Decápolis
(7,24-10,52); IV. Ministério em Jerusalém
(11,1-13,37); V. Paixão e Ressurreição de Jesus:
(14,1-16,20).***
Ou de outra maneira:
Do cap. 1 ao cap. 4, Jesus é batizado por João
Batista e começa a pregar, chama discípulos e realiza milagres. Conforme a
oposição contra Ele aumentava, ensinava mais por parábolas.
Do cap. 5 ao cap. 7, Jesus continua
a realizar muitos milagres, demonstrando a sua compaixão pelas pessoas. Depois
que João Batista é morto, Jesus alimenta mais de cinco mil pessoas e caminha
sobre as águas. E ensina contra falsas tradições.
Do cap. 8 ao cap. 10, Jesus Cristo continua a
realizar milagres. Pedro testifica que Jesus é o Cristo. O Salvador profetiza
três vezes sobre o seu sofrimento, a sua Morte e a sua Ressurreição, mas os
discípulos não entendem plenamente o significado. Ele ensina-os sobre a
humildade e o serviço exigidos aos discípulos.
E do cap. 1 ao cap. 4, durante a última semana
da sua vida terrena, o Salvador entra em Jerusalém, ensina os discípulos, sofre
no Getsémani e é crucificado. Por fim, Jesus Cristo ressuscita e sobe aos Céus.
***
Tal como os
outros evangelistas, Marcos apresenta-nos a pessoa de Jesus e o grupo dos
discípulos como primeiro modelo da Igreja.
Em relação ao Jesus Cristo, mais do que em qualquer outro Evangelho, Jesus,
“Filho de Deus” (1,1.11; 9,7; 15,39), revela-se profundamente humano, de contrastes por vezes desconcertantes:
é distante (4,38-39) e acessível
(8,1-3), repele (8,12-13) e acarinha (10,16); impõe “segredo” acerca da sua pessoa e do bem que faz e manda apregoar o
benefício recebido; manifesta limitações e até aparenta ignorância (13,32). É verdadeiramente o “Filho do Homem”, título da sua
preferência. Desta sorte, a pessoa de Jesus torna-se misteriosa, porque encerra
em si, conjunta e simultaneamente, um homem verdadeiro e um Deus verdadeiro.
Vai residir aqui a dificuldade da sua aceitação por parte das multidões que O
seguem e mesmo por parte dos discípulos.
Na primeira
parte deste Evangelho (1,14-8,30), Jesus
mostra-se mais preocupado com o acolhimento do povo, atende às suas
necessidades e ensina; na segunda parte (8,31-13,37) volta-se preferencialmente para os Apóstolos que
escolheu (3,13-19): e com
sábia pedagogia vai-os formando, revelando-lhes progressivamente o plano da
salvação (10,29-30.42-45) e
introduzindo-os na intimidade do Pai (11,22-26).
Quanto ao Discípulo de Jesus, este Jesus, tão simples e humano, é também muito
exigente para com os discípulos. Desde o início da sua pregação (1,14), arrasta as multidões atrás de si e alguns
discípulos seguem-no (1,16-22). Porém, após
a escolha dos Doze (3,13-19), começa a
desenhar-se uma certa separação entre este grupo mais íntimo e as multidões.
Todos seguem Jesus, mas de modos diferentes. Este seguimento exige esforço e
capacidade de abertura ao divino, que se manifesta em Jesus de forma velada e
indireta através dos milagres que Ele realiza. É por meio dos milagres que o
discípulo descobre no Filho do Homem a presença de Deus, vendo em Jesus de
Nazaré o Filho de Deus. Porque a pessoa de Jesus é essencialmente misteriosa,
para o seguir, o discípulo precisa de fé a toda a prova: sente-se duvidoso,
inseguro e tentado a abandoná-lo, vendo nele apenas o carpinteiro de Nazaré.
Por isso, Jesus é também um incompreendido: os seus familiares pensam que Ele
os trocou por uma outra família (3,20-21.31-35); os doutores da Lei e os fariseus não aceitam a sua
interpretação da Lei (2,23-28; 3,22-30), nas
questões do sábado e da expulsão dos demónios; os chefes do povo e dos
sacerdotes veem-no como um revolucionário perigoso e dilemático para o seu “status quo” (11,27-33). Por isso, desde o início do Evangelho, se desenha o
destino de Jesus: a morte (3,1-6; 14,1-2).
Mas, os
discípulos “de dentro” não são muito melhores do que “os que estão de fora” (4,11). Também eles sentem dificuldade em compreender o
mistério da pessoa de Jesus, que tem que lhes explicar as parábolas: parecem-se
com os cegos (8,22-26; 10,46-53), que olham
e não veem, e com os surdos que ouvem sem escutar (cf 4,11).
A
incompreensão é uma das mais negativas caraterísticas do discípulo no texto de
Marcos. É este o motivo por que, ao confessar o messianismo de Jesus (8,29), Pedro pensava num messias (termo
hebraico que significa “Cristo” em grego) mais
político que religioso e que libertasse o povo dos dominadores romanos. Isso
aparece claro quando Jesus desvia o assunto e anuncia pela primeira vez a sua
Paixão dolorosa (8,31). Pedro,
não gostando de tal messianismo, começa a repreender o Mestre, vindo este a
mandar-lhe que se retire e a acusá-lo de defender os interesses dos homens e
não os de Deus (8,31-33). O que ele
queria era como todos os discípulos de todos os tempos um cristianismo sem
esforço e sem grandes compromissos, quando o Mestre trazia um messianismo
radical a mover inteligências, corações e atitudes. A revolução é de dentro
para fora e não de fachada e transitória.
Apesar da
incompreensão manifestada pelos discípulos em relação aos seus ensinamentos,
Jesus não desanima e continua a ensiná-los na perspetiva da cruz e do serviço
pela Vida (8,31-38;
9,30-37; 10,32-45). O
efeito não foi muito positivo: no fim da caminhada para Jerusalém e depois de
Ele lhes ter recordado as dificuldades por que iria passar a sua fé (14,26-31), ao verem-no atraiçoado por um dos Doze e preso (14,42-45), “deixando-o, fugiram todos” (14,50-52):
“Então,
os discípulos, deixando-o, fugiram todos. Um certo jovem, que o seguia envolto
apenas num lençol, foi preso; mas ele, deixando o lençol, fugiu nu.”.
E Pedro
negou-O, como o fazemos tantas vezes, que também o traímos e fugimos dele.
Este é,
certamente, o Evangelho onde qualquer cristão se sentirá mais bem retratado.
2017.11.28 –
Louro de Carvalho
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