A
Páscoa marca o tempo e os lugares. Como esperançosa marca do tempo, fica
assinalada nas culturas dos povos antigos e, em especial no povo de Deus, tanto
no do Antigo Testamento como no do Novo Testamento, bem como em cada um dos
anos da nossa era; e como inapagável marca dos lugares que assinala, reveste de
festa, lazer, encontros, floração e vida.
Os
antigos festejavam-na como festa do novo rebentar da Natureza materializado na
verdura, floração, sementeiras e usual mudança do tempo atmosférico. Ainda não
era verão, mas já não era o inverno do rigor gelado, ventoso e encharcadiço,
que tinha passado. A Natureza renova-se rejuvenescendo!
Os
hebreus, depois do tempo da escravidão no Egito, passaram a celebrar a Páscoa
como “passagem”, libertação determinada e operada pelo Senhor da amargura de
vida sob o império faraónico para a terra prometida, não sem o difícil trânsito
pelos meandros do deserto – agora sob a guia da Lei outorgada por Deus a Moisés
no Sinai. Esta outorga da Lei constitui a aliança entre Deus e o seu povo,
selada no sangue sacrificial dos touros e dos cabritos ou dos cordeiros, e que,
pela observância das normas da Lei da parte do povo, garantia da parte de Deus
a proteção sempre e em toda a parte. Era considerada a nova criação, para
aquele povo, talvez mais maravilhosa que a primeira criação, a do livro do
Génesis (cf
Gn 1,1 - 24). Por
isso, apesar de inúmeras vezes o povo ter infringido a Lei e, sobretudo,
adorando os ídolos como se fossem outro Deus e fazendo demasiada na fé em
alianças com outros os povos, todos os anos – na sua terra, no exílio ou na
diáspora – as famílias judaicas celebravam nesta época do ano a Páscoa.
Celebravam-na em casa ou na tenda, de pé, rins cingidos, cajado na mão, fazendo
a leitura da Lei (no atinente ao memorial da saída do
Egito), pronunciando
a bênção, entoando o cântico de libertação e tomando a refeição de peregrino.
Esta refeição tinha por base o pão ázimo (aquando da libertação
do Egito, não houve tempo para que o fermento levedasse a massa), o cordeiro ou cabrito macho e
sem mácula, com ervas amargas, e, como bebida, o vinho com água. (cf
Ex 13,3-10).
A
Páscoa de Cristo foi celebrada com os discípulos em Jerusalém à boa maneira
judaica, mantendo basicamente a tradição bíblica (cf
Lc 22,7-13). Porém,
como Ele veio inaugurar um tempo novo ou a plenitude do tempo (vd
Gl 4,4), insuflou na
Páscoa, transmitida pela tradição bíblica, um novo sentido. Está aqui o Reino
de Deus. Esta presença do Reino postula a reformulação da Aliança. Esta aliança
deixa de ser assinalada pelo sangue de touros ou de cordeiros e cabritos, mas
passa a ser celebrada no sangue de Cristo, o que significa a desistência dos
sacrifícios que se faziam todos os anos com outros cordeiros ou com outros
cabritos pascais e se assume o sacrifício de Cristo, feito por uma só vez e a
valer para sempre pela remissão dos pecados. Este sacrifício realiza-se em dois
momentos: no contexto do banquete, em que Ele abençoa o pão e o vinho e os
consagra em Seu Corpo e Sangue e reparte por todos como entrega pela
humanidade, dizendo-lhes que aquele pão e aquele vinho são o seu corpo e sangue
e ordenam que comam e bebam (cf Lc 22,14-20); e no calvário, no dia
seguinte, depois de Se deixar manietar quando estava em oração no Monte das
oliveiras, condenar e conduzir à cruz onde Se imolou no Calvário (cf
Lc 22, 39 – 23,49).
***
Porém,
a Ceia e o Calvário, não acontecem sem que seja lavrado em testamento o
mandamento novo do amor fraterno como marca dos cristãos, ficando-se a saber
que ninguém tem maior amor que Aquele que dá a vida pelos outros (cf
Jo 13,34-35; 15,9-17).
E a Ceia e o Calvário presentificam-se todos os anos como celebração da Páscoa
histórica, semanalmente para celebração do Dia do Senhor, que veio, que está e
que há de vir, e diariamente sempre que se celebra a liturgia do Altar
precedida pela celebração da Palavra. Mas a morte de Cristo não se repete;
presentifica-se renovando a distribuição da graça, do alimento, da edificação
da unidade e do reforço da fraternidade.
E
isto não aconteceria se Cristo permanecesse morto. Morto não dá vida, não
alimenta, não reúne em definitivo. Morto junta para luto, mas divide com as
partilhas. Os cristãos dividiram-se porque quiseram fazer prevalecer a morte
sobre a Ressurreição. Entretidos na disputa pela herança, não deram conta de
que a cruz do Calvário se transformou em cruz florida na Páscoa, disponível
para todos…
Quero
então dizer que a morte de Cristo não passou do terceiro dia. Como as
Escrituras, que ele explicou aos discípulos de Emaús na tarde daquele primeiro
dia da semana, garantiam, Ele ressuscitou. Aqueles dois discípulos
reconheceram-No na bênção e na partilha do pão. Depois, “levantaram-se e
voltaram imediatamente a Jerusalém onde encontraram reunidos os onze apóstolos
e os seus companheiros, que lhes confirmaram: Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” (Lc
24,33-34).
***
Por
isso, hoje e a partir de hoje, estamos em Páscoa: Páscoa da Natureza, Páscoa da
vida renascente, ressemeada, reflorida, reverdejante e “refrugífera”; Páscoa da
libertação e da liberdade; Páscoa da graça e da misericórdia; Páscoa da paz e
do perdão; Páscoa de Cristo ressuscitado e dos homens redimidos; Páscoa de Deus
e da Igreja; Páscoa da Fé e da Esperança; Páscoa da Caridade e da Justiça; Páscoa
do Espírito Santo e da missão; Páscoa da bênção e da alegria; Páscoa da vitória
do amor sobre o pecado, o demónio e a morte; Páscoa dos apóstolos e dos
discípulos; Páscoa de crentes e não crentes; Páscoa dos doentes, dos cativos,
dos pobres e dos descartados pela sociedade; Páscoa da glória no Céu e da paz
na Terra.
É
a Páscoa que leva o Papa Francisco proclamar Urbi et Orbi, em 27 de março de 2017: “Jesus Cristo, encarnação da misericórdia de Deus, por amor morreu na
cruz e por amor ressuscitou. Por isso, proclamamos hoje: Jesus é o Senhor!”
É a Páscoa em
que a Ressurreição de Jesus cumpre em pleno a profecia dos Salmos 117 (116) e 118 (117), “a misericórdia de Deus é eterna, o seu amor
é para sempre, não morre jamais” e faz dizer ao Papa que “podemos confiar
completamente N’Ele, e damos-Lhe graças porque por nós Ele desceu até ao fundo
do abismo” (vd mensagem Urbi et Orbi, 27 de março de 2016).
É a Páscoa
que nos faz reconhecer que só Deus pode preencher com o seu amor os “vazios
espirituais e morais da humanidade” e “os vazios que se abrem nos corações e
que provocam ódio e morte”. Diante deles “somente uma infinita misericórdia nos
pode dar a salvação e não permitir que submerjamos, mas continuemos a caminhar
juntos em direção à Terra da liberdade e da vida”. (id et ib).
É a Páscoa
que nos motiva ao anúncio jubiloso por toda a parte “Jesus, o crucificado, não está aqui, ressuscitou (cf Mt 28,5-6) e nos oferece “a certeza
consoladora de que o abismo da morte foi transposto e, com isso, foram derrotados
o luto, o pranto e a dor” (cf id et ib; Ap 21,4).
É a Páscoa
que nos mostra o Senhor, que “sofreu o abandono dos discípulos, o peso duma
condenação injusta e a vergonha duma morte infame” e nos faz agora, com a sua
Ressurreição, “compartilhar a sua vida imortal e nos oferece o seu olhar de
ternura e compaixão para com os famintos e sedentos, com os estrangeiros e
prisioneiros, com os marginalizados e descartados, com as vítimas de abuso e
violência” (vd mensagem Urbi et Orbi, 27 de março de 2016).
É a Páscoa
que devemos celebrar, “não com o fermento
velho e da malícia e corrupção, mas com os ázimos da pureza e da verdade” (1Cor 5,8).
É a Páscoa
que nos faz procurar “as coisas do Alto, onde está Cristo, sentado à direita de
Deus Pai, e aspirar, não às coisas da terra, mas às coisas celestes” (Cl 3,1-2).
É a Páscoa –
“caminho de misericórdia e fraternidade” – que devemos celebrar “com um coração
renovado, aberto à imensidão do Amor de Deus”, com preconiza o Bispo do Funchal
(cf mensagem de 27 de
março).
É a Páscoa que, evocando os sofrimentos, lutas, “solidão e
tristeza” de tantas pessoas”, salienta que “a ressurreição de Jesus, celebrada
pelos cristãos, é um sinal de “esperança” (id et ib).
É a Páscoa que “é Cristo ressuscitado a penetrar nas nossas
vidas e no coração da humanidade” e “o triunfo da vida e do amor sobre o
pecado, o sofrimento e a morte” ” (id et ib).
É a Páscoa da “eterna misericórdia de Deus” que ilumina a
fragilidade humana e que “é luz nas nossas noites, é festa da vida, é esperança
renascida a gritar um novo cântico de ternura e de amor” (id et ib).
***
Num mundo
“cheio de pessoas que sofrem no corpo e no espírito, enquanto as crónicas
diárias estão repletas de relatos de crimes brutais, que, muitas vezes, têm
lugar dentro do lar, e de conflitos armados numa grande escala, que submetem
populações inteiras a provas inimagináveis” (Francisco, Urbi
et Orbi) …
2016.04.27 – Louro de Carvalho
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