Está a decorrer, desde o dia 30 do mês de novembro do ano transato,
I Domingo de Advento, até 2 de fevereiro de 2016, festa da Apresentação de
Jesus no Templo, o Ano da Vida
Consagrada, proclamado por Carta Apostólica do Papa Francisco, de 21 de
novembro de 2014, festa da Apresentação de Maria.
Abarcando o Ano Internacional da Luz sob a égide a ONU (os discípulos são
a luz do mundo – Mt 5,14), é confiado à Virgem da escuta e da contemplação, a
primeira discípula do seu amado Filho, filha predileta do Pai e
revestida de todos os dons da graça,
para a qual olhamos como modelo insuperável de seguimento no amor a Deus
e no serviço do próximo.
Ora, constituindo a primeira e grande iniciação cristã o Batismo,
sacramento instituído por Jesus Cristo, para cunhar na alma dos crentes o selo
indelével pelo qual Ele nos tornou propriedade da Santíssima Trindade, filhos
do mesmo Pai e seus irmãos – os membros do Povo de Deus ou fiéis já são
consagrados pelo Batismo.
A este respeito, pode ler-se na Constituição Dogmática sobre a Igreja, a Lumen Gentium, n.º 11:
A índole sagrada e orgânica da
comunidade sacerdotal efetiva-se pelos sacramentos e pelas virtudes. Os fiéis,
incorporados na Igreja pelo Batismo, são destinados pelo caráter batismal ao
culto da religião cristã e, regenerados para filhos de Deus, devem confessar
diante dos homens a fé que de Deus receberam por meio da Igreja.
No entanto, embora o serviço fundamental da Igreja pudesse em tese desenvolver-se
sem a presença da imensa plêiade daqueles e daquelas que decidem seguir, de
forma mais específica e próxima, o Cristo pobre, obediente e casto, a Igreja
assume a consagração especial dos religiosos e religiosas que voluntariamente
optam pela profissão explícita e radical dos valores evangélicos da pobreza
voluntária, da obediência inteira e da castidade perpétua, bem como dos leigos e
leigas que optam por viver estes valores no meio do mundo, entregues às lides
profissionais como quaisquer outros cidadãos. São estes e estas a que
vulgarmente se dá a denominação de consagrados e consagradas. Alguns são também
consagrados pelo sacerdócio. E todos os sacerdotes, mesmo os ditos seculares,
são chamados a um sério compromisso com a obediência, com a castidade (na
Igreja Latina, mesmo a castidade celibatária) e uma certa sobriedade no uso e
fruição dos bens terrenos.
No seu n.º 44, mesma Lumen Gentium
ensina que, pelos votos de observação dos preditos valores ou conselhos, o
cristão se entrega “totalmente ao serviço de Deus”, ficando destinado ao
serviço do Senhor por novo e especial título. Se pelo Batismo morrera para o
pecado e fora consagrado a Deus, pretende agora, para colher mais abundantes frutos
da graça batismal, libertar-se, pela profissão dos conselhos evangélicos, dos
impedimentos que o possam afastar do fervor da caridade e da perfeição cultual.
Fica assim mais intimamente consagrado ao serviço divino. E esta consagração
será tanto mais perfeita quanto mais a firmeza e a estabilidade dos vínculos
representarem a união de Cristo à Igreja, Sua esposa. E como aqueles conselhos,
pela caridade a que conduzem, unem os que os seguem, de modo especial, à Igreja
e ao seu mistério, deve também a sua vida espiritual ser consagrada ao bem de
toda a Igreja. Daqui nasce o dever de trabalhar na implantação e consolidação
do reino de Cristo nas almas e de o levar a todas as regiões com a oração e com
a ação, segundo as próprias forças e a índole da própria vocação. (…)
A profissão dos conselhos evangélicos
aparece como sinal que pode e deve atrair todos os membros da Igreja a
corresponderem animosamente às exigências da vocação cristã. E, porque o Povo
de Deus vai em demanda da cidade futura (cf Hbr 13,14), o estado de consagração,
tornando os seus seguidores mais livres das preocupações
terrenas, manifesta melhor aos fiéis os bens celestes, já presentes neste
mundo, sendo assim testemunho da vida nova, adquirida pela redenção de Cristo e
pré-anunciando a ressurreição futura e a glória do reino celeste.
Também o estado de consagração
patenteia de modo especial a elevação do reino de Deus sobre tudo o que é
terreno e as suas relações transcendentes, revelando aos homens a grandeza do
poder de Cristo e a potência infinita com que o Espírito Santo atua na Igreja.
E, embora o estado constituído pela
profissão dos conselhos evangélicos, não pertença à estrutura hierárquica da
Igreja, está contudo inabalavelmente ligado à sua vida e santidade.
***
Fazendo uma aligeirada visita à
aludida carta pastoral, convém surpreendê-la na sua tríplice estrutura: objetivos
do Ano da Vida Consagrada; expectativas
para o Ano da Vida Consagrada;
e horizontes do Ano da Vida Consagrada.
–
Objetivos –
Francisco começa por citar João Paulo
II na Exortação pós-sinodal Vita
consecrata: “Vós não tendes apenas uma história gloriosa para recordar
e narrar, mas uma grande história a construir! Olhai para o futuro, para o qual
vos projeta o Espírito a fim de realizar convosco ainda coisas maiores” (n. 110).
E refere que indicou como objetivos para este Ano os mesmos que o pontífice
polaco propusera à Igreja no início do terceiro milénio. São três: olhar com gratidão o passado; viver
com paixão o presente; e abraçar
com esperança o
futuro.
- Olhar com gratidão o passado.
Cada Instituto de Vida Consagrada provém duma rica história carismática em
cujas origens está presente a ação de Deus que chama algumas pessoas para
seguirem Cristo, traduzirem o Evangelho numa forma peculiar de vida, lerem com
os olhos da fé os sinais dos tempos, responderem às necessidades da Igreja.
Depois, desenvolveu-se tocando outros membros em novos contextos geográficos e
culturais, como semente que se torna árvore alargando os seus ramos. Por isso,
será oportuno que cada família carismática recorde os seus inícios e a sua
história, para agradecer a Deus os dons que tornam a Igreja bela e habilitada
para toda a boa obra. Repassar a própria história afigura-se indispensável para
manter viva a identidade, robustecendo a unidade da família e o sentido de
pertença dos membros.
- Viver com paixão o presente.
A grata lembrança do passado impele-nos a implementar de modo cada vez mais
profundo os aspetos constitutivos da vida consagrada. Desde os inícios do
monaquismo até às “novas comunidades” de hoje, cada forma de vida consagrada
nasceu da chamada do Espírito para seguir a Cristo segundo o ensinamento do
Evangelho. A regra é o Evangelho e qualquer outra regra é apenas expressão do
Evangelho e instrumento para o viver em plenitude. Por isso, hoje a questão é
de saber se e como nos deixamos interpelar pelo Evangelho. Também viver com paixão o presente é
tornarmo-nos “peritos em comunhão”, ou “testemunhas e artífices” daquele “projeto
de comunhão” que está no vértice da história do homem
segundo Deus. Somos, pois, chamados a oferecer um modelo de comunidade que,
mediante o reconhecimento da dignidade de cada pessoa e a partilha do dom de que
ela é portadora, promova as relações fraternas na sociedade marcada pelo
conflito, pela convivência difícil entre culturas, pela prepotência sobre os
mais fracos e pelas grandes desigualdades.
- Abraçar com esperança o
futuro. São grandes as
dificuldades da vida consagrada: a diminuição das vocações e envelhecimento,
sobretudo no mundo ocidental; os problemas decorrentes da grave crise
financeira mundial; os desafios da internacionalidade e globalização; as
insídias do relativismo; a marginalização e a irrelevância social... Mas é
nestas incertezas, que partilhamos com muitos contemporâneos, que atua a nossa
esperança, fruto da fé no Senhor da História que garante a sua presença
reconfortante junto de nós. Esta esperança não se funda em números ou em obras,
mas n’Aquele em quem pusemos a nossa confiança (cf 2 Tm 1,12). É por isso necessário não ceder à tentação dos
números e da eficiência, e menos ainda à tentação de confiar nas próprias
forças, mas atender às recomendações de Bento XVI: “Não vos unais aos profetas de desventura, que proclamam o fim ou a insensatez
da vida consagrada na Igreja dos nossos dias; pelo contrário, revesti-vos de
Cristo e muni-vos das armas da luz – como exorta São Paulo (cf Rm 13,11-14) –, permanecendo acordados e vigilantes”.
E o Papa, que faz uma referência
específica aos jovens como futuro da Igreja e da Sociedade, termina o capítulo
augurando que o “encontro” que os diferentes Institutos vão empreender se torne
caminho habitual de comunhão, de apoio mútuo, de unidade.
–
As expectativas –
Francisco diz o que espera deste Ano
de graça da vida consagrada. Espera: a alegria; a profecia; a espiritualidade
da comunhão; a missão; e a resposta a Deus e à humanidade.
- A alegria. Ma convicção de que Deus preenche o coração e nos faz
felizes, deve a fraternidade vivida em nas comunidades alimentar a alegria da nossa entrega total à Igreja,
às famílias, aos jovens, aos idosos, aos pobres, que nos realiza e dá plenitude
à nossa vida. Um consagrado triste é um contratestemunho. Ora, numa sociedade
que ostenta o culto da eficiência, saúde e sucesso e que marginaliza os pobres
e exclui os “perdedores”, podemos testemunhar, através da vida, a verdade das
palavras da Escritura: Quando sou fraco,
então é que sou forte (2 Cor 12,10).
A vida consagrada não cresce pela organização de belas campanhas vocacionais,
mas pelo nosso testemunho de homens e mulheres felizes.
- A profecia. Espera o Papa que os consagrados despertem o mundo,
porque esta é uma das caraterísticas da vida consagrada. Sendo pedida a todos a
radicalidade evangélica e não só aos religiosos, estes seguem o Senhor de um
modo especial – profético e interpelante. O religioso não pode renunciar à
profecia. Recebendo de Deus a capacidade de perscrutar a história e interpretar
os acontecimentos, é como a sentinela que vigia durante a noite e percebe a
chegada da aurora (cf. Is 21,11-12).
Conhecendo Deus e os homens, torna-se capaz de discernimento e de denúncia do
mal do pecado e das injustiças. Porque é livre, não responde a outros senhores
que não a Deus, nem tem outros interesses além dos de Deus. Está do lado dos
pobres e indefesos, porque sabe que Deus está do lado deles. Sendo assim, Francisco
espera que os Institutos e todos os lugares que nasceram da caridade e da
criatividade carismática – e ainda farão nascer, com nova criatividade – se
tornem cada vez mais o fermento duma sociedade inspirada no Evangelho, a
“cidade sobre o monte” que mostra a verdade e a força da palavra de Jesus.
- A espiritualidade da comunhão. Os consagrados são chamados a ser
“peritos em comunhão”. Por isso, o Papa deseja que essa espiritualidade se
torne realidade e que os consagrados estejam na vanguarda abraçando “o grande
desafio que nos espera” neste milénio: fazer
da Igreja a casa e a escola da comunhão: comunhão praticada dentro das
respetivas comunidades (na aceitação e solicitude recíprocas, na partilha dos
bens materiais e espirituais, na correção fraterna, no respeito pelas pessoas
mais frágeis); comunhão entre os membros dos diferentes Institutos, através de
projetos comuns de formação, de evangelização, de intervenções sociais; e
procura duma sinergia sincera entre todas as vocações na Igreja, a começar
pelos presbíteros e os leigos, a fim de “fazer crescer a espiritualidade da
comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para
além dos seus confins”.
- A missão. Também os consagrados têm de sair de si mesmos para ir às
periferias existenciais. “Ide pelo mundo inteiro” (cf Mc 16,15) – é o mandato
de Jesus. E a humanidade aguarda: pessoas sem esperança, famílias em
dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado o futuro, doentes
e idosos abandonados, ricos saciados de bens mas com o vazio no coração, homens
e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino. Dos consagrados
Francisco espera gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de
solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do
Evangelho, na iniciação à vida de oração; e almeja a racionalização das
estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às
exigências atuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às
novas necessidades.
- A resposta a Deus e à humanidade. Cada forma de vida consagrada deve
interrogar-se sobre o que lhe pedem Deus e a humanidade de hoje. Os grupos
contemplativos podem encontrar-se ou conectar-se entre si para troca de
experiências sobre a oração, modo de crescer na comunhão em Igreja, apoiar os
cristãos perseguidos, acolher e acompanhar as pessoas que andam à procura duma
vida espiritual mais intensa ou necessitam de apoio moral ou material. E os
grupos de ação poderão fazer o mesmo. O Espírito gerou modos de vida e obras
tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em
esquemas pré-fabricados. Mas neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério
controlo sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder
às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor
dos pobres.
Só com atenção às necessidades do
mundo e na docilidade aos impulsos do Espírito é que este Ano se tornará um
autêntico kairós, um tempo de Deus, rico de graças e de
transformação.
–
Os horizontes –
- Além das pessoas consagradas, o
Papa dirige-se aos leigos que, com elas, partilham ideais, espírito,
missão. Na realidade, à volta de cada família religiosa, bem como das
Sociedades de Vida Apostólica e dos Institutos Seculares, gravita uma família
maior, a “família carismática”, englobando os vários Institutos que se
reconhecem no mesmo carisma e sobretudo os leigos que se sentem chamados, na
condição laical, a participar da mesma rede carismática. Neste sentido, devem
celebrar o Ano com toda a “família”, para crescerem e responderem juntos aos apelos
do Espírito na sociedade atual.
- O Ano da Vida Consagrada diz
respeito à Igreja inteira. Assim, o Pontífice dirige-se a todo o
povo cristão, para que tome cada vez maior consciência do dom que é a
presença das pessoas consagradas, herdeiras de grandes Santos que fizeram a
história do cristianismo. Por isso, todas as comunidades cristãs devem viver o
Ano, procurando agradecer ao Senhor e, reconhecidas, recordar os dons que foram
recebidos, e ainda recebemos, pela santidade dos Fundadores e das Fundadoras e
da fidelidade de tantos consagrados ao seu próprio carisma, bem como estreitarem-se
ao redor dos consagrados, rejubilar com eles, partilhar as suas dificuldades,
colaborar na prossecução do seu serviço e obra, que são os da Igreja.
Aqui, Francisco não resiste a fazer
especial alusão à coincidência do Ano da Vida Consagrada com o Sínodo da
Família, desejando realçar a complementaridade entre a espiritualidade dos
consagrados e a da vocação matrimonial e familiar – ambas expressão da vida
eclesial.
- Ousa o Papa dirigir-se também às
pessoas consagradas e aos membros de fraternidades e comunidades pertencentes a
Igrejas de tradição diversa da católica. O monaquismo é património da
Igreja indivisa, bem vivo nas Igrejas ortodoxas e na Igreja católica. Nele bem
como nas sucessivas experiências do tempo em que a Igreja do Ocidente
ainda estava unida, se inspiram iniciativas análogas surgidas no âmbito das Comunidades
eclesiais da Reforma, tendo estas continuado a gerar no seu seio novas
expressões de comunidades fraternas e de serviço. É desejável que se desenvolva
o conhecimento mútuo, a estima, a cooperação recíproca, de modo que o
ecumenismo da vida consagrada sirva de ajuda ao caminho mais amplo rumo à
unidade entre todas as Igrejas.
- O Papa, reconhece a presença do
monaquismo e doutras expressões de fraternidade
religiosa em todas as grandes religiões e as experiências, já consolidadas,
de diálogo intermonástico da Igreja católica com algumas das grandes tradições
religiosas. Assim, augura que o Ano seja ocasião para avaliar o caminho
percorrido, sensibilizar as pessoas consagradas neste campo, questionar-nos
sobre os passos a dar para um conhecimento recíproco cada vez mais profundo e
uma colaboração crescente em muitos âmbitos comuns do serviço à vida humana, na
certeza de que o caminhar em conjunto é sempre um enriquecimento e pode abrir
caminhos novos nas relações entre povos e culturas que, neste período, aparecem
carregadas de dificuldades.
- Vêm no final os bispos como que a apor a chancela da hierarquia sobre a vivência
carismal. Devem eles aproveitar o ensejo para acolher, cordial e
jubilosamente, a vida consagrada como um capital espiritual que contribui para
o bem de todo o corpo de Cristo e não só das famílias religiosas, dado que “a
vida consagrada é dom feito à Igreja”: nasce e cresce na Igreja, “está
totalmente orientada para a Igreja”. Por isso, o Bispo de Roma convida os
irmãos no episcopado a uma especial solicitude em promover nas comunidades
diocesanas os diferentes carismas – os históricos e os novos – apoiando,
animando, ajudando no discernimento, acompanhando com ternura e amor as
situações de sofrimento e fraqueza em que se encontrem alguns consagrados e,
sobretudo, esclarecendo com o ensino pastoral o povo de Deus sobre o valor da
vida consagrada, de modo a fazer resplandecer a sua beleza e santidade na
Igreja.
***
Aqui deixo pequena súmula de um
documento cujo alcance, na minha reiterada distração, pensei de interesse
restrito, mas que afinal constitui uma mensagem dirigida a toda a Igreja (a ler
na íntegra e a meditar), especificando diversos setores, e também ao mundo
ecuménico e ao mundo inter-religioso, em prol da ação comum por Deus e a bem da
humanidade, ao serviço da vida!
2015.03.08 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.