Recolocar
o Homem no Centro – Desafio Antropológico
Porto,
24 janeiro 2015
2. Mas qual é a realidade que de
imediato o Papa aponta no seu discurso? É a da «cultura do desperdício». A
expressão é pelo menos paradoxal. Em princípio, cultiva-se um campo, legumes,
frutas, flores. Mas é preciso rendermo-nos à evidência: o crescimento da
produção industrial foi também o crescimento do lixo. De facto, quanto mais
rico se é, mais se deita fora; e quanto mais progresso há, mais as coisas se
tornam obsoletas, portanto lançadas no lixo. Uma sociedade pobre e tradicional
recupera cuidadosamente tanto os objetos como os pensamentos e o saber fazer.
Uma sociedade rica e progressista substitui-os por outros e põe tudo o que é
antigo no lixo. Sem dúvida, de início contenta-se com deitar fora as coisas,
mas não tarda a deitar fora também as pessoas. Começa por considerar que o
livro é obsoleto relativamente à tablette eletrónica, depois acaba por achar
que a velha humanidade histórica é obsoleta em relação à futura humanidade.
2.0.
O Santo Padre fala assim de «pôr
no lixo» as crianças a nascer, as pessoas idosas, os jovens sem emprego. Todos
aqueles que «não servem» à realização económica. Portanto são excluídos. O
cálculo puramente utilitário não pode senão rejeitar o que parece inútil. Mas
levemos a lógica utilitária até ao seu termo e ponhamo-nos a questão : em
que é que o próprio homem é útil? Será que o nascimento de um novo bebé serve
para alguma coisa ? E se a criança serve seja para o que for, então porquê
uma criança em vez de uma máquina útil ? Mais valia um pequeno robot. – E
os sentimentos ? - direis vós. Não há também em nós uma dimensão afetiva
ao lado da dimensão utilitária! Sem dúvida. E para lisonjear esta dimensão
afetiva, mais vale um cão… Sim, pela utilidade e o bem-estar individual, um
robot e um cão serão sempre mais proveitosos que um filho. Nem um nem outro
terão a crise da adolescência. Nem um nem outro correm o risco de matar o pai,
ou pior : de obedecer ao Pai até à cruz.
3. Assim a busca da utilidade e do conforto resulta na
multiplicação do desperdício (visto que é preciso desembaraçarmo-nos de tudo o que está fora do programa, de tudo
o que é dramático e portanto de tudo o que está plenamente vivo). Cristo dizia
que o sábado é para o homem e não o homem para o sábado, e o nosso mundo
diz-nos que o homem é para o mercado e não o mercado para o homem. Daí esta
advertência do Papa Francisco : « Quando o homem não está mais no
centro, há outra coisa no centro e o homem está ao serviço dessa outra coisa. A
ideia é pois salvar o homem para que ele volte ao centro : ao centro da
sociedade, ao centro do pensamento, ao centro da reflexão. Colocar o homem uma
vez mais no centro».
A
coisa parece simples. Contudo, tem com que nos deixar perplexos.»
I – Colocar o homem no centro?
4. Aqui o Papa fala de «colocar o
homem no centro»; noutro lado fala de «ir para as periferias existenciais».
Estas duas expressões contrárias deram, cada uma separadamente, título a
colóquios organizados por pessoas da Igreja. Contudo, quando as aproximamos,
poderíamos ter a impressão que giramos à volta do mesmo, ou que pelo menos
fazemos constantes idas e vindas. Vamos procurar o homem à periferia para o
trazer ao centro, e uma vez que ele está no centro, tem de partir de novo para
a periferia. Parte de outra maneira, sem dúvida, mas arrisca-se apesar de tudo
a fazer repetidamente o caminho de ida e volta...
Talvez eu jogue um pouco
excessivamente com estas expressões. Mas se jogo assim é por razões muito
sérias. E é em primeiro lugar para nos pôr de sobreaviso contra os slogans.
Mesmo se um slogan for formado a partir de um discurso do Papa, continua a ser
um slogan, e não é um pensamento. Dá-nos a impressão de estar na infalibilidade
pontifícia, ao mesmo tempo que nos impede de «refletir sobre a realidade, sem
medo e com inteligência».
Reflitamos um pouco, e aliás, a
inteligência assinala-nos que a expressão que usamos aqui e que nos arriscamos
de reduzir a um slogan : «recolocar o homem no centro» põe um grande
problema : parece dizer exatamente o contrário do que acreditamos estar a
ouvir. Com efeito, aquele que afirma que é necessário recolocar o homem, mesmo que seja no centro, supõe que o homem é
alguma coisa que se pode deslocar e
portanto que é como um pião, transportável daqui para ali, segundo o nosso
capricho ou a nossa estratégia. A promoção poderia ser extraordinária, poderia
ser recolocar o homem sobre o trono ou levá-lo às nuvens, mas isto quereria
dizer que o homem é um pacote, uma máquina que podemos igualmente arrastar para
mais baixo do que a terra.
Mas não, vou talvez demasiado
depressa. Escutemos mais. O verbo é «recolocar» e não «colocar». Recolocar
implica o retorno a um lugar original, e não a um lugar arbitrário. Por
conseguinte, o desafio primeiro, antes de «recolocar» é de «reconhecer» o
verdadeiro lugar do homem, é de se perguntar no fundo o que é o ser humano.
É uma questão que, na verdade,
nos pomos poucas vezes. Mesmo nas maiores escolas ela não se coloca. Sem dúvida
porque imaginamos que é evidente. E pelo facto desta pretensa evidência,
naquelas que chamamos as «Grandes Escolas», aprendemos a ser um génio das
finanças, uma águia da engenharia, um carneiro do consumo, mas nunca a ser
humano. Diz-se mesmo que isso não tem estritamente nenhum interesse. E não
estamos completamente errados. Porque isso levaria os futuros génios, águias e
carneiros, mais longe que a lógica dos interesses mercantis ou mundanos, o que
não poderia senão fazer mal aos números dos negócios.
5. Além destas observações de
forma, há uma outra - de fundo. Sobre o tema preciso que nos ocupa, um outro Papa
– que o Papa atual acaba de beatificar –
tinha dito outra coisa diferente do Papa atual. Numa audiência de 24 julho de
1968, o beato Paulo VI evoca « a auto-idolatria moderna : o
antropocentrismo ». Mas então? O antropocentrismo, o facto de «colocar o
homem no centro» não seria bom? Um pouco mais de um ano antes, na encíclica Populorum progressio, Paulo VI fulminava
contra « o humanismo fechado». Retomava uma frase de Henri de Lubac
segundo a qual «o humanismo exclusivo é um humanismo desumano», depois citava
Pascal observando que «o homem ultrapassa
infinitamente o homem».
É certo que o Papa Francisco não
renegaria nenhuma destas afirmações. A letra mudou, mas o espírito é o mesmo. A
questão que se põe, contudo, é a de saber porque é que se operou uma tal
mudança da letra, e se esta mudança da letra não corresponderia a uma mudança
de época, a qualquer coisa que estaria em processo de se fazer, e que não seria
nada menos que uma saída da modernidade, e por isso uma saída do humanismo,
senão mesmo da humanidade.
O espírito moderno sempre se quis
humanista. A Enciclopédia Larousse, no seu artigo sobre as Luzes, afirma de
maneira significativa que «a filosofia das Luzes procede de um humanismo
laico»: coloca o homem no centro do
mundo, e pretende trabalhar para a sua felicidade». Colocar o homem no centro
do mundo aqui não tem nada de uma proposta astronómica, uma vez que a
modernidade é decididamente coperniciana e não acredita mais no geocentrismo.
Aqui, colocar o homem no centro do mundo quer dizer rejeitar Deus – e sobretudo
a Igreja – para as margens. Este «humanismo antropocêntrico» opõe-se portanto
ao «tradicionalismo teocêntrico». Está na origem da fé no Progresso e na
Revolução. Mas eis que: seja ela liberal ou socialista, esta fé está morta. As
utopias do século XIX causaram desastres ao século XX. Ninguém mais acredita
verdadeiramente na salvação do humano por si mesmo, nem através da verdade do
Partido, nem através da liberdade do Mercado.
6. Este colapso do humanismo
antropocêntrico não é um acidente da história. Ele é o efeito do seu
desenvolvimento interno, e diria mesmo do seu êxito. É precisamente porque o
homem conseguiu colocar-se no centro que a sua humanidade se tornou uma
escória. Esta passagem da exaltação ao aniquilamento é bastante fácil de
compreender. Quando o homem se considera o soberano senhor da sua vida, faz
automaticamente, da sua vida, um material manipulável à medida dos seus desejos
e das suas inovações. Já não há mais nada para «o repor no seu lugar». Não há
mais transcendência para o alimentar e o impedir de se devorar a si mesmo. O
dado da sua natureza não é mais um dom a respeitar e a cultivar, mas uma base
de dados a explorar e a upgrader.
Assim o humanismo antropocêntrico
oscila por si mesmo para um pós-humanismo tecnocêntrico, o qual não o vem
contradizer, mas exprime a sua verdade escondida. Porque ele já não quer
receber-se dos pais temporais nem mesmo do Pai Eterno, mas quer ser o produto
dos seus próprios empreendimentos, torna-se no fim de contas escravo das suas
máquinas e dos seus mercados. É o ponto mais delicado do nosso
raciocínio : querendo um domínio absoluto sobre tudo, incluindo sobre a
sua mão, o homem perdeu a mão. Eis o mais estranho na nossa situação: no
próprio momento em que o individuo pretendeu proclamar a sua autonomia, a
economia e a tecnologia tornaram-se realidades autónomas. Como é que uma tal
contradição é possível?
Vós deveis ser particularmente
sensíveis a isto. Esta contradição não é sem analogia com a história de
Portugal. Quero falar desse momento em que os Lusíadas se referem a Alcácer-Quibir, esse momento em que, tendo
estendido o seu império pelo mundo, Portugal se deixa prender pelo seu próprio
poder e, de proa da Europa inteira passa subitamente para quinta roda da
carroça. É esta brusca reviravolta que faz dizer a Fernando Pessoa na
Mensagem : « …incumbe ao Português, pai de vastos mares, / De querer,
de poder isto unicamente: /O mar inteiro, ou a sua vã franja desfeita - / O
todo, ou o seu nada[1]. » Mas o que o poeta não diz, é que não é «ou…, ou…». Os dois vão a
par. É porque quiseram o mar inteiro, e não uma simples terra para si, que se
tornam uma franja de espuma que se desfaz. É porque quiseram tudo, e não no seu
devido lugar, que já não têm mais nada.
Assim perdemos o controlo do
dispositivo que era suposto dar-nos o controlo de todas as coisas. Por um lado,
porque este dispositivo é desproporcionado, não está à medida das nossas mãos;
por outro lado, porque o desejo de controlo total procede de uma perda de
confiança, e esta perda de confiança conduz-nos a uma paranoia devastadora, a
uma cegueira diante da ordem da realidade.
II – Os paradoxos da dignidade humana
7. Antes de descer mais, e de mostrar mais precisamente porquê, depois de ter criticado o antropocentrismo, devemos ter hoje um discurso sobre a necessidade de recolocar o humano no centro – sinal de uma mudança de época, e mesmo sinal de apocalipse – quereria voltar um pouco acima, e interrogar-me sobre aquilo que costumamos chamar a dignidade do homem. Porque, frequentemente, «recolocar o humano no centro» equivale a «defender a dignidade do homem». Ora, nós não podemos ignorar que este termo é ambíguo. A « dignidade» serve muitas vezes para legitimar a auto idolatria que acabamos de pôr em evidência: um domínio total do homem sobre a natureza, incluindo sobre a sua própria natureza, que conduz à devastação. Assim a palavra é emblematicamente utilizada pela «Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade», a fim de promover a eutanásia. E a retórica da dignidade pode tornar-se cúmplice da produção de desperdícios, da exterminação da criança mongoloide, do velho caquético, mas também de tudo o que não pode fazer um bom consumidor dotado desta liberdade suprema de poder escolher entre vários programas de TV ou de vários sites de encontro…
Contra esta falsa interpretação
da dignidade humana, temos este verso de Vitorino Nemésio extraído da sua
coletânea O Verbo e a Morte :
« Homem, menos que nada e mais que
tudo[1]. » Como temos de o ouvir? É
como uma justaposição, de forma que seríamos de um lado mais que tudo, e do
outro menos que nada? Mais que tudo pelo espírito, por exemplo, e menos que
nada pelo corpo, segundo um dualismo bem conhecido. Não creio. Parece-me antes
que um implica o outro. É quando nos sentimos menos que nada que nós podemos
ser mais que tudo. Porque a dignidade humana não é uma dignidade de plenitude,
mas uma dignidade de recetividade e de responsabilidade.
Tomai um jarro. Ele é feito para
oferecer água. Enquanto está vazio é menos que ele próprio, e muito menos que a
água do ribeiro. Mas quando está cheio e deita água para refrescar um pouco,
ele é então mais que a água porque se torna água oferecida, torna-se mais que
ele mesmo, porque o que realiza vai mais longe que o espaço oco da sua
terracota. Nós somos assim vasos de
argila capazes de todos os tesouros, para retomar uma expressão se S. Paulo
(2 Co 4, 7). Somos menos que nada, mas como um recetáculo que pode acolher
tudo, na gratidão e na responsabilidade em relação a tudo.
8. Explico-me um pouco. Podeis colocar o homem ao centro, mas a primeira coisa que ele fará, se for verdadeiramente humano, é descentrar-se. É isso que o carateriza. Enquanto o animal se põe no centro do seu ambiente, e faz tudo pela sobrevivência da sua espécie, o homem é aberto ao mundo e interessa-se por aquilo que ultrapassa a sobrevivência da sua espécie. E esta abertura faz-se pelo seu corpo e pelo seu espírito, pelo seu espírito graças ao seu corpo. O seu espírito é capaz de conhecer tudo, de convenire cum omni ente, diz S. Tomás de Aquino, quer dizer a «encontrar qualquer ser». Mas o seu próprio corpo dispõe o seu espírito para este encontro universal. É um corpo não especializado, ou superespecializado na generalidade», como diz o paleoantropólogo André Leroi-Gourhan. No extremo dos nossos braços, não temos um órgão de preensão perfeitamente adaptado ao seu meio, mas esta estrela fantástica que é a mão – a mão que pode tudo manejar porque pode tudo acolher, porque ela não é antes de mais um órgão de preensão mas de receção. De facto, a mais alta atividade da mão encontra-se menos no agarrar que no acariciar, e a carícia não cessa de aproximar o outro esmorecendo – como a onda sobre a margem – contra o seu mistério inexprimível.
Esta abertura aos possíveis não é
sem risco. Implica a possibilidade de uma dispersão total. Podemos
apaixonar-nos pelas aventuras de uma vedeta ou pela vida sexual das moscas e
esquecer a aventura da nossa própria vida sexuada. Podemos mesmo tornar-nos
moralmente desumanos, fixando-nos numa possibilidade (que pode aliás ser uma
recusa de escolher) fechando-nos à realização dos outros e à nossa. Nisto,
somos menos perfeitos que um bacalhau, por exemplo, porque o bacalhau realiza
espontaneamente o seu «ser bacalhau» - atinge mesmo bastante facilmente o
estado sobrenatural dito «á Gomes de Sá» - enquanto o homem, pelo facto da sua
abertura ao mundo, deve realizar a sua vocação deliberadamente, e pode portanto
falhá-la…
Há contudo um aspeto pelo qual
nós somos muito superiores ao bacalhau assim como a todos os outros animais, é
que nós podemos baixar-nos até junto de qualquer um deles para o cuidar, o
educar e para dele fazer um prato ou um poema. Nunca nenhum bacalhau se
preocupou com o homem. Mas o homem pode ter o cuidado pelos bacalhaus, até
propor uma moratória em relação à sua pesca, a fim de que eles se multipliquem,
ou até os assumir num fado perturbador.
Tal é a nossa dignidade, a de um vazio hospitaleiro ao universo.
9. Mas há ainda outra coisa, que está em ligação com o fado – com os « dias de esperança perdida ». É que a nossa dignidade revela-se especialmente na infelicidade. A tragédia grega sabia isso : o mortal derrubado de repente interpela os deuses, e descobre ali, no seu grito, uma verticalidade que rasga o mundo, que reclama a sua justificação para além de si mesmo. Encontra-se aqui o «menos que nada e mais que tudo» de Vitorino Nemésio.
Nesta ordem de pensamento, Blaise
Pascal constata que a consciência da nossa miséria é o sinal da nossa grandeza.
Como sentiríamos nós o carater miserável da nossa condição, se não fossemos
feitos para qualquer coisa maior, se não fossemos «reis despossuídos»,
«decaídos de uma natureza melhor que nos é própria», e na expetativa de uma
misericórdia que permanece obscura para nós? Um cão não se lamenta por ter uma
vida de cão. Mas nós fazemo-lo, e é a marca de uma nobreza em sofrimento. A
evidência da nossa miséria contém esta revelação feliz que nós não nos
sentiríamos tão miseráveis se a nossa origem não fosse divina.
Há aqui aquilo que alguém
emocionado pela grande lenda portuguesa poderia chamar um «sebastianismo
racional». A mordedura da nossa decadência é o sinal que o rei não está morto,
que vai voltar, que a sua perda é uma passagem para nos fazer subir de um
império terrestre a um reino celeste – porque, uma vez mais, nós não
experimentaríamos esta decadência se não tivéssemos sido feitos para alguma
coroa…
10. É preciso contudo ir mais longe que Pascal e voltarmo-nos para um pensamento de Chesterton. A ideia – mestra do grande pensador católico inglês, é a gratidão; a gratidão como princípio da alegria, porque a alegria nunca é algo produzido laboriosamente, é algo recebido gratuitamente, que nos ultrapassa, que vem de mais alto que nós, e que nos dilata e nos leva a cantar.
Ora a gratidão, explica
Chesterton, supõe o sentimento da nossa indignidade. Ele escreve na sua Autobiografia : « A única
forma de desfrutar, nem que fosse de uma erva má, é sentir-se indigno, mesmo de uma erva má. [1]. » Mas eis que em vez desse sentimento de indignidade, que nos abre à
ação de graças pelas menores coisas, nós reivindicamos uma dignidade em face da
qual as melhores coisas parecem ser-nos sempre devidas, de tal modo que caímos
demasiado depressa na amargura e na recriminação. Atiramos «para o ar
disparates sobre « o direito de viver», o «direito à experiência», «o
direito à felicidade »[2] »: « Em vez de dizer, como o velho poeta religioso: Que é o homem, Senhor, para que penses nele;
o filho de um homem, para que Te dignes aperceber-Te da sua presença?
(Salmo 8, 5), nós dizemos como o Major temperamental ao seu clube : «Esta
é uma costeleta digna de um cavalheiro?» Pois bem, não só desaprovo esta
atitude tanto quanto a atitude pessimista [que acha que nada tem sabor nesta
vida], mas penso que ela conduz mais ou menos à mesma coisa, quer dizer à perda
real de todo o petite pela costeleta ou por uma chávena de chá de dente de leão[3]. »
Eis o paradoxo mais profundo da
dignidade humana. A sua recetividade e a sua responsabilidade culminam como
capacidade para a gratidão, mas esta capacidade de gratidão está intimamente
ligada ao sentimento da nossa indignidade. Nada dispõe mais à alegria que
saber-se criatura, filho, herdeiro, e mesmo sentir-se pecador. Então
reconhecemos que não temos nada que não tenhamos recebido, que todos os nossos
direitos de homem são em primeiro lugar dons de Deus e uma herança dos nossos
pais, e que, por nós mesmos, nós mereceríamos era o inferno. A partir daqui,
fazer das tripas coração para lidar com algumas pessoas antipáticas pode
aparecer como um início do paraíso – e mesmo o sofrimento pode assumir um valor
positivo. Sentimo-nos menos que nada, de tal modo que a menor folhinha de erva
nos toca como uma graça, e abre os nossos lábios para chamar todos os que
passam a louvar connosco, e este louvor dirigido ao Eterno é superior a
tudo.
III – Como se põe a questão do homem hoje?
11. Estas várias observações muito gerais não devem fazer-nos esquecer as nossas reflexões sobre a situação particular do nosso tempo. Falei de uma mudança no discurso pontifício significativa de uma mudança de época. O humanismo antropocêntrico colapsou, ou antes deixou emergir a sua verdade, que é o tecno centrismo pós humano.
O humano não é mais que um
desperdício, ou antes um material para fabricar um alegado super-homem, na
realidade uma espécie de engrenagem no grande dispositivo mundial.
Pode-se então passar facilmente
do desperdício à jihad, ou do desperdício ao terreno baldio, inculto. O
pós-humanismo tecnocêntrico produz uma dupla reação contemporânea : a do
anti-humanismo teocêntrico, e a do ambientalismo infra-humano. Estas três
figuras pós-modernas, com os seus três pseudo paraísos, o paraíso do cyborg, o
paraíso do bonobo e o paraíso do kamikaze opõem-se entre si, mantendo-se cada
um no seu erro e denunciando o do outro, mas também concordam mais
essencialmente: estão de acordo para desprezar o humano no homem, e é por isso
que elas podem acabar por se entender.
O mundo tecno-liberal pode
muito bem submeter-se a um islamismo amigo dos espaços verdes. Aquele que está
pronto a manipular cientificamente o humano pensa que o humano
não é senão uma bricolagem da
evolução: pode portanto estar de acordo com aquele que acha que o homem não é
em nada superior ao macaco. E aquele que quer vencer pela jihad deve pedir
àqueles que dispõem de dinheiro e da tecnociência, os meios para serem os mais
eficazes dos terroristas suicidários. De qualquer modo, mesmo se eles se
combatem, eles entendem-se para fazer frente contra o humano tal como se apresenta
através das gerações, da história e da cultura. E é por isso que podemos sentir
a urgência, hoje, de recolocar o humano no centro.
12. Contudo, convém notar : se estas três figuras anti-humanas puderam aparecer, é também porque o humano parece ter perdido a sua legitimidade sobre a terra. Já o sugerimos : as utopias ao mesmo tempo humanistas e progressistas desabaram, especialmente depois das experiências totalitárias do século XX. E vários pensadores contemporâneos, especialmente Günther Anders, Hans Jonas e René Girard, sublinharam esta grande novidade do nosso tempo : o apocalipse que era uma noção religiosa, tornou-se uma noção filosófica, mesmo empírica.
Outrora os cristãos afirmavam que
o mundo ia acabar, e os pagãos que os rodeavam acusavam-nos de ser ateus e
cegos, porque o cosmos aparecia-lhes perpétuo, e o sol divino. Hoje, dizer que
o mundo vai acabar é uma vulgaridade científica : o sol extinguir-se-á
daqui a alguns biliões de anos, a vida sobre a terra, daqui a algumas centenas
de milhões de anos. Claro que nós não vamos certamente esperar tanto tempo,
porque podemos muito bem acelerar as coisas, com o esgotamento dos recursos
naturais, o desastre climático, a guerra bacteriológica ou nuclear… Nos nossos
dias os cenários catastróficos não faltam. Enquanto as grandes descrições de
amanhãs que cantam, faltam cada vez mais.
Que é que isto quer dizer para
nós? Que a presença do homem sobre a terra não está somente ameaçada, mas que
não tem mais legitimidade no horizonte puramente mundano. Como escreve
notavelmente o filósofo francês Rémi Brague : « A questão do
humanismo tomou uma orientação nova, mais profunda e mais radical.
Perguntava-se até então : como
podemos promover um humanismo? O que queria dizer : defendê-lo contra
todas as figuras do inumano. Hoje a questão é sobretudo : é preciso verdadeiramente promover um
humanismo[1]? »
13. Eis portanto como se põe a questão do humano nos nossos dias. Eis o «desafio antropológico» sem precedente ao qual devemos fazer face, e que é na verdade um desafio teologal – um formidável apelo à evangelização. E ai de nós se não anunciarmos o evangelho (1 Co 9, 16). Porque quando a presença do homem sobre a terra já não vai de si mesmo, é necessário encontrar-lhe uma legitimidade no céu. E quando as esperanças mundanas não podem mais sustentar um élan história, é necessário insuflar este élan a partir da esperança teologal.
Eu repito-o muitas vezes. O fim
do mundo não é um obstáculo para o cristão. Se lhe disserem que a terra vai ser
destruída amanhã, ele pode continuar a plantar árvores, a ter filhos, a
ensinar-lhes a ler a Bíblia, porque ele não faz isso para o seu êxito temporal,
fá-lo para a vida eterna. Os cristãos não têm necessidade de um futuro
assegurado para abrir o Futuro que virá. E abrem-no a partir da fonte do
tempo.
14. Contudo trata-se de facto do anúncio do Evangelho, e não do anúncio de Deus. Não basta já dizer : «Sem Deus, o homem não sabe onde ir e não consegue mesmo compreender quem ele é». A situação que descrevemos anteriormente marca a insuficiência radical do deísmo
assim como do espiritualismo para
defender o humano. Em nome de Deus, podemos desprezar o homem e cair num
anti-humanismo teocêntrico e portanto no atentado suicida para estender o
império de Alá. Em nome do espírito, podemos desprezar a carne, cair no
pós-humanismo tecnocrático e portanto na venda do homem aos em bocados para
construir um androide perfeitamente integrado no desespero ambiente.
O único Deus que pode defender o
humano contra os empreendimentos do homem «aumentado» ou do homem «submisso», é
o Deus feito homem. Não super-homem, mas simplesmente homem. Não chefe
religioso organizando razias, mas pobre trabalhando com as suas mãos, pedindo
de beber a uma Samaritana…
É preciso compreender bem
isto : se o Verbo se fez carne numa família judia, se ele se tornou mesmo
carpinteiro numa época em que não havia internet nem mesmo eletricidade, é que
para levar uma existência divina, não temos necessidade de todas as inovações
fantasiadas pela tecnologia : a imortalidade aqui em baixo seria um
impedimento para a vida eterna, o domínio total seria um entrave à entrega
filial… E se o Verbo morreu na cruz depois de ter pedido ao primeiro Papa para
meter a espada na bainha, é que para estender o reino de Deus, nós não temos
necessidade de pegar em outras armas senão na do simples testemunho (com um
pequeno chicote, apesar de tudo, para expulsar os vendilhões do Templo). Basta
pouca coisa para sermos verdadeiros homens novos, quer dizer santos. É raro por
isso que tenhamos falta de meios. Pelo contrário, temo-los em demasia, a maior
parte das vezes : é a acumulação frenética dos meios que nos leva a adiar
sem cessar a hora da caridade, quando bastaria um pouco de pão e de vinho do
Porto a partilhar, cantando com os pobres, para reinaugurar o Reino.
IV – O verdadeiro sentido da
economia.
15. Eis portanto a grande
novidade da nossa época : vinda de Deus e animada pelo seu Espírito, a
Igreja deve cada vez mais pregar o humano e o carnal… Poderia terminar aqui.
Teria dito, talvez, coisas interessantes. Não teria dito o essencial. Recordais
que esta expressão «recolocar o homem no centro», antes de a retomar diante do
Parlamento Europeu, em Estrasburgo, O Papa Francisco tinha-a dito em Roma, no
fim de um almoço com economistas. É então também a questão da economia que está
em jogo. Mas da qual se trata ? Da dos economistas ou da do almoço à volta
da mesa? E que quer dizer «economia»? Porque esta palavra é certamente uma
daquelas de que mais se perdeu o sentido.
Podemos dar-nos conta a
partir da linguagem corrente - ou antes da linguagem dos nossos avós. Para
eles, a economia era uma virtude moral. Esta virtude correspondia a «limitar a
despesa material, diminuir o consumo de alguma coisa a quando da sua
utilização»[1]
. Voltavam-se os fatos,
punham-se novas solas no calçado, remendavam-se as roupas. Esta limitação da
despesa material tem um valor em si mesma: impede o desperdício. Deve sobretudo
ter um valor na medida em que abre um espaço para uma despesa espiritual:
consome-se menos para ter mais comunhão; temos a hospitalidade de Marta que
oferece uma bela refeição ao seu hóspede, mas moderam-na a fim de ter também a
hospitalidade de Maria, que sabe escutar o seu hóspede. Esta economia é análoga
à transubstanciação: não acumula, não desperdiça o pão fresco, mas come mesmo o
pão duro a fim de que o pão se transforme em palavra, em encontro, em festa de
presença. No fundo, corresponde ao que S. Tomás de Aquino chama a virtude da
austeridade - virtude que não tem nada da avareza nem da triste figura, mas que
pelo contrário, dispõe à alegria de estar juntos: Porque a austeridade, como
virtude, não exclui todos os prazeres, mas somente aqueles que são supérfluos e
desordenados e é por isso que ela
se aparenta a esta afabilidade que Aristóteles chama amizade, ou ao que em
grego se chama «eutrapelia», que dizer um espirito alegre [1]. »
Mas os economistas vieram e
zombaram dos ecónomos. Disseram-nos que a economia não estava na economia.
Ensinaram-nos a fazer crescer, sem fim, a despesa material e a limitar a
despesa espiritual. Proibiram-nos mesmo de fabricar coisas com as nossas mãos,
numa oficina adjacente à casa, a fim de comprar o pronto-a-consumir com os
nossos cartões bancários, num hipermercado que se encontra a alguns minutos do
escritório.
16. O fundamento da economia não está contudo em primeiro lugar na limitação da despesa material tendo em vista dar lugar a uma despesa espiritual. Está na família. Oîkos, em grego significa «casa», « lar», lugar onde a família se implanta. Nómos significa « lei ». A economia é pois a lei ou a ordem na família.
Mas, ainda aqui, os economistas
disseram que nos enganávamos e que a economia era antes de mais a riqueza das
nações ou o aumento do poder de compra. De modo que em vez de estar ao serviço
das famílias, a economia dos economistas pôs as famílias ao seu serviço,
deslocou-as pela exploração do trabalho, pela fascinação das mercadorias, pela
dispersão dos seus membros à qual foi dado o nome de liberdade individual e que
é antes de mais o isolamento e depois a servidão do indivíduo ao sistema. Para
retomar uma observação de Chesterton no Le
Monde comme il ne va pas, poderíamos dizer que outrora o homem já estava
perdido, mas pelo menos sabia que buscava alguma coisa, um lar onde viver com a
sua mulher e filhos, um «em casa» onde acolher os seus amigos, um espaço onde
pudesse realizar-se como pai e morrer saciado de dias vendo os filhos de seus
filhos e os amigos dos seus amigos: «Mas agora aquele que tinha desde há muito
perdido o seu caminho, perdeu também o seu endereço[2]. »
De onde vem esta errância tão
extrema que já não sabe mais que há um destino? Vem do Homem, precisamente. Do
Homem com H grande. Deste Homem genérico, que não existe, e do qual se pode
fazer seja o que for. Vem de que a filosofia moderna, numa espécie de angelismo
vergonhoso, considerou o Homem como um ser racional, esqueceu que o homem era
em primeiro lugar filho ou filha, homem ou mulher – para se tornar pai ou mãe –
numa palavra que ele era um ser familiar.
Esta utilização abusiva da
palavra «Homem» não só o desencarnou do seu corpo filial e sexuado, mas
privou-o também dos seus poderes. Porque se começou a atribuir ao Homem em
geral o que não pertencia à pessoa em particular, de maneira a podermos
orgulhar-nos com os feitos do Homem e a não nos desolarmos com a sua servidão.
Como diz Olivier Rey numa entrevista recente que tive com ele e que deve
aparecer em breve na revista francesa Art
press : « Ouve-se dizer que o homem de hoje sabe enviar sondas a
Júpiter, manipular a matéria à escala do nanómetro, etc. Mas quem é este famoso
«Homem», capaz de tais proezas ? A técnica e o liberalismo modernos
prometiam aumentar-lhe a autonomia mas, na verdade, o que verdadeiramente se
autonomizou foi um processo técnico-liberal que escapa a todo o controle, e que
produz os seus efeitos mais espetaculares tornando-nos cada vez mais
dependentes dele para a nossa simples sobrevivência. Em troca de bens de
consumo em grande número, alienámos cada vez mais as nossas competências
vitais.» Acrescento que nós as alienámos porque nos vemos como simples
indivíduos, e não como filhos, herdeiros de umat radição, de competências, de
rituais familiares… Porque perdemos o sentido verdadeiro da economia.
17. Este denegrir do ser familiar é tipicamente apocalítico. Que nos diz o Apocalipse de S. João ? O Dragão está diante da Mulher em trabalho de parto, e apresta-se a devorar o seu filho logo que ele nasça (Apoc 12, 4). Devorar o filho não é necessariamente destruí-lo como ser, mas destruí-lo como filho – e portanto lisonjeá-lo como indivíduo, livre de todos os laços, e que não mais poderá, desde então, senão dedicar-se a todas as cadeias.
Repeti muitas vezes que nós
estávamos na época de uma «contra anunciação». O mistério do Verbo feito carne é
parodiado pelo projeto tecnicista. Na Anunciação, uma jovem mulher judia acolhe
no seu seio a própria Vida, no seu Mistério, segundo uma providência que a
ultrapassa; na contra anunciação do nosso tempo, queremos reconstruir uma vida
em transparência, segundo planos que nos convenham. Claro, Maria concebe de
maneira virginal, pelo poder do Espírito; mas por isso ela não aboliu a
sexualidade, realizou-a. Porque, como na conceção carnal, mais que na conceção
carnal, ela está na confiança, não no controle; ela tem necessidade de um
homem, José, desde a partida para Belém e na fuga para o Egito; ela não tem um
filho escolhido, à sua medida, submisso à sua mamã ou prometido ao maior
bem-estar: ela tem o Filho por excelência, que lhe escapa absolutamente, faz uma
fuga para o Templo, é julgado como blasfemo, morre jovem numa cruz, e para
cúmulo, excedendo um pouco mais a sua mãe, ressuscita!
Mas eis o ponto : queremos
evitar a Vida que nos expõe a esta tragédia, então lançamo-nos num programa que
nos impõe a obsolescência ou mais simplesmente o imobilismo. O controlo afasta
a confiança. O computorizado afasta o Logos. A engenharia substitui-se geração.
O nosso modelo já não está na maiêutica, mas no Mecano… E tal é na verdade o
objetivo do Dragão : inverter a fórmula do Credo, produzir um homem novo,
mas que seria criado, não gerado –
nascido do século antes de todos os pais…
18. Os pais… É preciso sublinhar
a importância das genealogias na Bíblia. Muitas vezes as leituras da missa
escamoteiam-nas. Diz-se que esta sequência de nomes não traz nada de
importante, que não nos dá nenhum conselho moral ou espiritual. Pode acontecer
contudo que ali se encontre o ensinamento mais importante, o mais moral, o mais
espiritual – aquele que nos lembra que a salvação se opera na história, com
pessoas concretas; que Deus não é um oceano onde são afogadas as diferenças e
as singularidades, mas que ele é o Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de
Jacób – Deus de Fabrice, portanto, e Deus de Paula – enfim Deus de nossos pais…
É um grande perigo apresentar o Natal unicamente a partir do presépio (como um
lugar fora da história) e perder de vista a genealogia de Cristo em Mateus, ou
esquecer que se Maria e José estão em Belém é porque pertencem à Casa de David.
A Natividade não é só uma descida do Céu é também uma descendência da terra.
Como diz o salmo (84, 12) : A
verdade germinará da terra, e do céu se inclinará a justiça…Há dois
movimentos que se encontram. Mas o espiritualismo muitas vezes negligenciou a
germinação, a descendência, o movimento que vem da sequência das gerações, para
não considerar senão um indivíduo sem origem que se salva a sós com Deus…
Em vez de procurar o equilíbrio
entre a razão e a filiação, entre o exame crítico e a herança assumida, a
lógica teve tendência a rejeitar o genealógico. Sobre isto, as provetas estão
de acordo com o Corão. No Corão, em contraste com a Bíblia, não há genealogias,
não há sentido da história, porque Maomé não faz senão restaurar a religião
original, que tinha sido deformada, falsificada pelos judeus e os cristãos. Não
é pois só a tecnologia hoje que rejeita o genealógico, é também o teológico de
um monoteísmo abstrato, capaz de enrolar qualquer um, desprezando a sua cultura
e o seu nascimento, numa jihad mundializada. A teologia cristã, pelo contrário,
assume a genealogia até ao próprio Deus, através do mistério da Trindade.
19. Chego à minha conclusão : para começar a sair da crise económica e antropológica atual, seria necessário reencontrar não só o sentido de Deus e do espírito, mas também e sobretudo o sentido da família e da filiação, da paternidade e da maternidade. Poderíamos quase revirar o título do célebre poema de Rudyard Kipling : « Tu serás um homem, meu filho», e visar mais longe : «Tu será um filho, meu homem», porque sem dúvida é isso o mais difícil, hoje como ontem, embora hoje mais do que ontem. O Antigo Testamento, com efeito, termina com esta promessa do profeta Malaquias (3, 24) : Ele conduzirá o coração dos pais aos seus filhos e coração dos filhos aos seus pais, para que, não mais, eu venha ferir o país com o anátema. É que estes corações sempre tiveram dificuldade em encontrar-se. A grande diferença hoje, mais uma vez, é que já nem sonhamos fazê-lo, é que mal sabemos se temos um coração.
Num dos seus poemas ingleses,
intitulado « Prayer »,
Pessoa, que se considerou tantas vezes inimigo da Igreja, acaba por se dirigir
a «Nossa Senhora das lágrimas inúteis» com estas palavras
impressionantes : «Não sei como rezar/ O meu coração é uma mortalha
rasgada./ Vê como os meus cabelos embranquecem./ Oh ensina os meus lábios a
invocar/ Teu nome noite e dia / Como se esse nome fosse tudo. / A fé dos meus
pais sobe / Aos meus lábios nesta hora de provação·…(11)». É espantoso. A fé dos seus pais
volta-lhe aos lábios, mas numa língua estrangeira, como se fosse necessário
este longo percurso do exílio e da provação para descobrir enfim a sua origem
em toda a sua novidade inalterável.
20. Mas reencontra o sentido da família, é reencontrar também a proximidade e a transmissão familiar. Num grande romance de Michel Houellebecq, Les Particules élémentaires, Bruno, um dos personagens principais – um divorciado – faz esta confissão significativa : «Sou assalariado, sou inquilino, não tenha a transmitir ao meu filho. Não tenho nenhuma profissão para lhe ensinar, não sei mesmo o que ele poderá fazer mais tarde; as regras que conheci, de toda a maneira não serão válidas para ele, ele viverá num outro universo. Aceitar a ideologia da mudança contínua é aceitar que a vida de um homem seja estritamente reduzida à sua existência individual, e que as gerações passadas e futuras não tenham mais nenhuma importância aos seus olhos. É assim que nós vivemos, e ter um filho hoje, não tem mais nenhum sentido para um homem[1]. »
O sistema de produção industrial
teve tendência para destruir a transmissão familiar, e portanto a verdadeira
economia. Uma mãe já não ensina, à sua filha, a costura, a cozinha ou o piano,
porque a libertação da mulher lhe ordena que se submeta aos pratos cozinhados,
ao pronto-a-vestir, e aos milhões de títulos que podem estar contidos num iPod. Um pai já não ensina mais ao seu
filho a cultura da horta, a bricolagem ou a lectio
divina, porque a libertação do homem lhe impõe ele ir à prateleira dos
« legumes congelados », chamar o canalizador e seguir as informações
na Web enquanto o seu filho joga com a Playstation 4.
Mas há mais grave ainda : já
não há mesmo lugar para estabelecer laços entre as gerações. A mesa familiar,
que era um ponto de convergência e de transmissão dos avós para os netos, foi
destituída com vantagem para a tablette eletrónica. A família estilhaçou-se sob
o seu próprio teto. Cada um está diante do seu écran, e perderam-se estas artes
da mesa que são o coração palpitante da vida de família – estas artes que vão
da cultura da horta, à arte de abençoar e de dar graças, de contar histórias,
de cantar em coro velhas canções…
22. Tudo o que vos digo, no
fundo, é para voltar às coisas simples : reconhecer a superioridade da
mesa familiar sobre a tablette eletrónica, reaprender a encontrar-se à volta de
uma lareira, a falar uns com os outros, a jogar em conjunto… Porque e é isso o
mais incrível…
Que é que fez Jesus
ressuscitado ? Encontrou-se no meio dos seus apóstolos, comeu com eles,
comentou-lhes as Escrituras, e se os enviou a pregar a todas as nações, é começando por Jerusalém (Luc 24, 4 7),
quer dizer de próximo a próximo, a partir de um lar não fechado, mas
irradiante. O amor do próximo pode sem dúvida ensinar-se à distância. Mas não
se pode anunciar em toda a verdade senão tornando-nos próximos. E portanto a
partir de comunidades familiares, de comunidades eclesiais onde podemos sem
mentira chamar-nos irmãos e irmãs…
Mas coisas tão simples, nos
nossos dias, não exigem nada menos do que o martírio. Aliás não será este
talvez o verdadeiro poder económico ? A palavra «economia», nos Padres da
Igreja, designa a maneira como Deus realiza a salvação na história. Não é um
sentido derivado, é o sentido mais profundo – que revela a própria finalidade
da economia. A economia não é o acumular sem fim de bens materiais, mas o
implementar um espaço de vida para as famílias. Ora para que tendem as
famílias ? Para gerar e educar filhos, mas para quê ? Para que tenham
sucesso no mundo ? Para que vivam o máximo de tempo possível no maior
bem-estar ? Não, para que sejam salvos, quer dizer para que sejam
testemunhas da verdade e do amor até ao fim. Eis o que o pai pode transmitir ao
seu filho e que nunca será tornado obsoleto pelo progresso tecnológico. Cristo
lembra-nos: O céu e a terra passarão, mas
as minhas palavras não passarão (Mt 24, 35). Daí a urgência de transmitir
as suas palavras, e de as transmitir no quotidiano.
23. Espero não ter dito demasiadas asneiras, e que vós sabereis tirar alguma coisa das minhas palavras. Tentei falar sob a invocação de santo Fabrice, meu santo patrono, que foi também o primeiro bispo do Porto. E disse para comigo mesmo que Portugal afinal, é talvez, a parte mais avançada da Europa.
Não digo isto só no plano
geográfico, a propósito desta faixa de terra que é como o rosto de todo o nosso
continente voltado parra o Novo Mundo. Não o digo também só por causa do
Concílio de Braga, no século VI em que contra os maniqueus e os priscilianos, a
Igreja afirmou com força a fé na Trindade e na bondade divina do casamento e da
procriação dos filhos, à imagem desta mesma Trindade. Também não o digo somente
por causa da admirável reconquista de todo o país sobre os muçulmanos entre o
século X e o século XIII. Não o digo também somente por causa das aparições de
Fátima, em que a Santíssima Virgem mostrou como três pastorinhos podiam ser
mais fortes que a guerra e que o inferno.
Digo-o sobretudo porque, antes de todos os outros países europeus, Portugal
conheceu o colapso do seu império, porque o Eterno o conduziu antes dos outros
à humildade e à simplicidade, à modéstia de um reino composto por famílias, sob
a proteção da Sagrada Família. Ora é a partir daqui que se realiza a renovação
do mundo.
Fabrice Hadjadj
(Nota: para não tonar o texto ainda mais extenso, foram suprimidas as notas bibliográficas)
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