segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A missão e dignidade dos cardeais








A propósito da elevação de 20 personalidades ao cardinalato no consistório do próximo dia 14 de fevereiro, segundo a publicitação feita pelo próprio Papa por ocasião da recitação do Angelus na Praça de São Pedro, a 4 de janeiro, que inclui o Patriarca de Lisboa, ocorre-me pequena reflexão sobre a missão dos cardeais. Para o efeito, valer-me-ei da carta aberta que Sua Santidade endereçou, naquele mesmo dia, aos futuros purpurados e a um pouco de História. 
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Segundo o Bispo de Roma, os designados para o cardinalato são chamados a novo serviço, “um serviço de ajuda, apoio e proximidade especial à pessoa do Papa e para o bem da Igreja”. Mais: “o cardinalato é uma vocação” para o exercício desta “dimensão de serviço” ao Papa e à Igreja.
Mais do que a dignidade cardinalícia, que alguns indevidamente consideram como “um prémio, o ápice duma carreira, uma dignidade de poder ou de distinção superior”, Francisco sublinha, contra o carreirismo, o significado do “ser cardeal”: incardinar-se na Diocese de Roma para dar testemunho da Ressurreição do Senhor e dá-lo totalmente, até ao sangue se necessário. E, embora reconheça que os cristãos se alegram pela sua ascensão ao cardinalato e a festejarão como bons cristãos (porque é próprio do cristão rejubilar e festejar – releva o Pontífice), convoca os designados para a púrpura a aceitarem humildemente o cargo, rejeitando toda a mundanidade, “que embriaga mais do que o álcool em jejum, desorienta e separa da cruz de Cristo”.
Neste sentido, o Papa aconselha a cada um a “oração e um pouco de penitência” e faz votos de “muita paz e alegria”. Porém, em relação à missão de serviço, exprime-se na 2.ª pessoa:
“Far-te-á bem ao coração repetir na oração a expressão que o próprio Jesus sugeriu aos seus discípulos para que se mantivessem em humildade: Dizei: ‘Somos servos inúteis’, e não como fórmula de boa educação mas como verdade depois do trabalho, ‘quando terminastes tudo o que vos foi ordenado’ (Lc 17,10).
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O termo “cardeal” provém etimologicamente do vocábulo latino cardo/cardinis, que significa gonzo, quício, couceira (peça ou artefacto de metal e sobre o qual o batente – de porta ou janela – pode ser girar ou ser movimentado). De cardo, derivou-se o adjetivo relacional cardinalis / cardinale (de gonzos, de porta ou, figuradamente, principal). Assim, o Bispo de Roma começou a dispor de bispos que se encarregavam das cidades / dioceses satélites de Roma (suburbicariatos), dos presbíteros (padres) titulares das paróquias de Roma e dos respetivos diáconos – que o ajudavam no seu múnus episcopal e também no exercício do ministério petrino. Sendo eles os homens em que se apoiava o Papa na sua ação pastoral, eram os episcopi cardinales (os bispos principais ou cardeais), os presbyteri cardinales (os presbíteros principais ou cardeais) e os diaconi cardinales (os diáconos principais ou cardeais). Daí até que o termo cardinales passasse outra vez de adjetivo relacional a nome foi um pequeno passo.
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O cardinalato é, como se vê, uma instituição ligada ao exercício do primado do Romano Pontífice, para ajudar o Papa no governo da Igreja e sempre se manteve ligado ao primado, dele dependente na composição e atribuições. Surgiu num período de grande reforma da Igreja e para assegurar o seu êxito e continuidade. Foi no início do 2.º milénio que esta instituição teve o seu aparecimento, precisamente no Pontificado de S. Leão IX (1049-1054), o primeiro Papa santo, depois de 42 Papas consecutivos que não foram adornados com esse título.
Diga-se entre parêntesis que, no 1.º milénio, o título de santo se atribuía com mais facilidade do que hoje. Todavia, é sintomático que até ao ano 530 todos os legítimos Bispos de Roma tenham obtido esse título e a partir daí, com Bonifácio II, o tenham perdido. Até 884, o título ainda aparece com alguma frequência, mas com Estêvão VI (885-891), o imediato predecessor do Papa Formoso, o título desaparece, reaparecendo somente em 1049, justamente com o Papa que instituiu o cardinalato. 
No século X e primeira metade do século XI, a Igreja de Roma atravessou o período obscuro, o do chamado “século de ferro”. A Cátedra de Pedro, posta à mercê de umas poucas famílias romanas, ao sabor dos próprios interesses e de amigos, foi ocupada por pessoas que não estavam à altura. Por isso, Roma deixara de ser o ponto de referência pastoral e espiritual. Porém, foi nesse período que se deu a reforma de Cluny, que depressa extrapolou a vida monástica para o tecido eclesial, penetrando mesmo nalgumas cortes europeias, que se tornaram viveiros de santos e onde se encontrou força travar a crise que atingira o Papado. A partir de 1046, assomou no topo da Igreja uma série de Papas, na maioria alemães, criaturas do Imperador, mas escolhidas para reformar a Igreja de Roma e dar continuidade a essa reforma. É a “reforma gregoriana” – do nome do maior impulsionador, o Papa Gregório VII – reforma que se manifesta basicamente em duas frentes: moralidade do clero e autonomia ante o poder civil.
Para lograr os objetivos reformistas, Leão IX rodeou-se de eclesiásticos – sobretudo monges – amigos da reforma. Entre eles, sobressaem os monges Humberto e Hildebrando, os futuros cardeal Silva Cândida e papa Gregório VII; e o arcediago de Liege, Frederico de Lorena, futuro Papa Estêvão X. A modalidade encontrada para integrar na estrutura eclesiástica da Igreja Romana esses colaboradores externos foi a dos “cardinales”, cognominação que então se dava aos bispos e sacerdotes encarregados de ministrar sacramentos e presidir aos serviços litúrgicos, por turnos, nas Basílicas romanas. Com Estêvão II (752-757) eram “cardinales” os bispos das 7 dioceses suburbicárias ou da periferia da Urbe (Roma), e os padres que presidiam às igrejas “titulares” de Roma, correspondentes às atuais igrejas paroquiais. Esses bispos e presbíteros eram “cardinales”, que serviam por turnos nas basílicas romanas – os bispos, na Basílica de São João de Latrão; os padres titulares, nas de São Pedro, São Paulo, Santa Maria Maior, São Lourenço, etc. O termo “cardinal” não significava posição hierárquica, mas apenas implicava funções litúrgicas fora das próprias igrejas. Se eram eminentes, era pela sua posição de chefes das igrejas a que presidiam. 
Até Leão IX, o Papa, mais no enfoque de Bispo de Roma que de Pastor Universal, era assistido no governo corrente da sua Igreja, inclusive no múnus petrino, pelo clero romano: padres e diáconos. Nas questões mais relevantes, era assessorado pelo Sínodo, em que participavam os bispos suburbicários, os da Itália central e os de outras dioceses que eventualmente se encontrassem em Roma. No caso de sede vacante, o governo da Igreja Romana pertencia ao clero romano, representado por um triunvirato: o arcipreste (o chefe dos padres ou presbíteros), o arquidiácono ou arcediago (o chefe dos diáconos) e o primicério (o primeiro dos notários palatinos, ou seja, da Casa Episcopal). Era uma estrutura e uns procedimentos em parte comuns a outras dioceses.  Mas o sistema transforma-se com a reforma do século XI. Aos colaboradores externos o Papa confere cargos que os tornam “cardinales”, confiando-lhes dioceses “suburbicárias” ou igrejas “titulares”, isentando-os dos serviços litúrgicos e associando-os ao governo da Igreja. “Cardinal” passa assim de adjetivo a nome com a semântica de serviço e dignidade. Deste modo, os titulares das dioceses suburbicárias e das chamadas igrejas “titulares” já não são sempre membros do clero romano. Estes novos titulares, espécie de adidos, ficam dispensados do serviço litúrgico, embora conservem a categoria, e passam a colaborar no governo da Igreja, quando, dantes, os “cardinales” se cingiam à liturgia, designadamente a ministração dos sacramentos. Vêm a ser considerados os “cardines” (quícios) da Igreja Universal, integrando o chamado sacro colégio, tanto assim que S. Pedro Damião, em 1057, diz que os 7 bispos cardeais, ou seja, os 7 bispos suburbicários, participam com Pedro do poder supremo da Igreja. E é em 1059 que Nicolau II reserva a estes bispos a eleição do Papa. 
A Igreja de Roma, que até à primeira metade do século XI era considerada a sede do Bispo de Roma, começa agora a identificar-se com a Igreja Universal. E os cardeais vêm ganhar supremacia em relação aos bispos. E, no cisma que contrapôs Gregório VII ao antipapa Clemente III (1080-1100), este foi apoiado pelos cardeais presbíteros e diáconos, passando também estes cardeais a adquirir poder sobre os demais bispos. Gregório VII tentou diminuir o poder dos cardeais no governo da Igreja, mas a política centralizadora que promoveu, acabaria por reforçar-lhes o poder com os seus sucessores.
Com Pascal II (1099-1118) o colégio cardinalício já está organizado em três ordens: 6/7 bispos, 28 padres e 18 diáconos, na maioria italianos. Constituíam um estável órgão de governo de apoio ao Papa. Sob Calixto II (1119-1124), são chamados “senadores”, com primazia no que se refere ao múnus apostólico. E é por serem senadores, na linha dos titulares do senado da antiga Roma, que se vestem de púrpura. E o Papa, o principal dos “senadores”, também era purpurado, até que o dominicano Michele, eleito Papa Pio V, impôs como condição permitirem-lhe o uso do seu antigo hábito da Ordem dos Pregadores. E assim os papas usam o hábito branco.
Em 1130, já as três ordens de cardeais participaram na eleição do sucessor de Honório III. No segundo Concílio Lateranense (1141), os cardeais bispos são encarregados de desempenhar as funções do Sínodo Romano, mas é todo o Colégio Cardinalício que é o órgão supremo do governo da Igreja. O Concílio Lateranense III (1179) confirma os cardeais no poder de eleger o Papa, por maioria de dois terços e confere a todos os cardeais os mesmos direitos. Doravante, é constante a sua participação no governo da Igreja, assessorando o Papa; e, sede vacante, governam a Igreja e elegem o novo Papa. 
Em finais do século XI, é regular a reunião do consistório que, aos poucos, substitui o Sínodo Romano. O reforço do consistório assinala uma mudança, não sem resistências, em termos eclesiais: o exercício da autoridade passa dos bispos aos cardeais e a do Sínodo Romano ao consistório. Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, em visita aos cardeais, por ocasião do Concílio de Trento, censura os comportamentos hegemónicos dos cardeais sobre os bispos, sendo estes de instituição divina e aqueles de mera instituição eclesiástica.
A Igreja de Roma, mercê de circunstâncias e condicionamentos históricos, tornara-se a única sede importante do Ocidente, ao passo que as Igrejas Orientais católicas, que podiam exercer uma influência moderadora na manutenção das ancestrais estruturas de participação no governo eclesial, ficaram totalmente separadas, seguindo a própria via e tradição. Grandes Igrejas do Ocidente, quase parceiras da Romana, como a do Norte de África e a da Espanha visigótica, sucumbiram ao Islão. A única Igreja florescente de então é a da Inglaterra, que emerge da Igreja Romana, com as tradições e praxes canónicas desta. Quando, sob os Carolíngios, se realiza a unidade europeia, é a práxis da Igreja Romana que se instaura e difunde. Daí resultou, de forma pacífica, o fenómeno da centralização do Papado como fator de fortalecimento do Ocidente, que emergia de uma grave e profunda crise. No Pontificado de Inocêncio III (1198-1216), o mais significativo da centralização medieval da Igreja, o consistório reúne-se regularmente três vezes por semana. E, durante toda a Idade Média, tem reuniões regulares para deliberar e decidir sobre as questões mais importantes, quer de ordem espiritual quer temporal.
Na crescente organização da Cúria Romana, o Sacro Colégio mantém-se no topo, unido ao Papa no governo da Igreja, sendo o seu contributo sempre de auxílio e não de controlo ou diminuição da ação papal. No entanto, registam-se várias tentativas da parte dos cardeais de condicionar o Papa, através de “capitulações” ou compromissos feitos durante o conclave e tendentes a obrigar o eleito a aceitar algumas exigências dos cardeais, mas todas essas “capitulações” foram, total ou parcialmente, revogadas pelo Papa eleito. Por outro lado, pontificados breves e prolongadas situações de sede vacante (20 meses, em 1241; e 32, em 1268) favoreceram a importância dos cardeais, que não chegou a consolidar-se. Cabe, entretanto, ao camerlengo administrar da propriedade e a receita da Santa Sé, determinar formalmente a morte do Papa e servir de Chefe de Estado sede vacante, mas competindo o governo à congregação geral dos cardeais. E compete ao protodiácono anunciar ao mundo o Papa eleito.
Também a composição numérica do Sacro Colégio variou através dos tempos em proporção inversa entre importância e quantidade. No início do século XII, os cardeais são 53; no século seguinte, não superam os 20 e, por vezes reduzem-se a 10. Na situação sede vacante de 1254, os cardeais que elegem Alexandre IV são apenas 13. Em 1261, Urbano IV foi eleito por 8 cardeais e, em 1277, Nicolau III foi-o por igual número. A estabilidade no número de cardeais foi estabelecida por Sixto V, que o fixou em 70. Foi o Papa João XXIII quem estatuiu que todos os cardeais (independentemente da ordem que integrem) recebessem a ordenação episcopal e superou o número limite da composição do Sacro Colégio. João Paulo II irá ainda mais longe no número e internacionalização do Sacro Colégio. Paulo VI estabeleceu como limite de idade os 80 anos para a participação no conclave e o número de 120 de cardeais eleitores e decretou que os Patriarcas das Igrejas Católicas de Rito Oriental elevados ao Colégio Cardinalício passam a integrar Ordem dos cardeais-bispos ficando hierarquicamente a seguir aos demais cardeais-bispos suburbicários. Também a partir de João XXIII, os cardeais-bispos, embora recebam o título de uma igreja suburbicária de Roma não possuem quaisquer poderes de administração sobre as mesmas dioceses, que possuem um outro bispo residencial.
Hoje, os cardeais, qua tali, têm funções bastante reduzidas: colaboram com o Santo Padre no exercício da sua função primacial, mas mais integrados nos organismos da Cúria Romana (nem sempre são presididos por cardeais) do que através de verdadeiros consistórios, que são mais reminiscências históricas que estruturas efectivamente decisionais. O consistório hoje serve mais para formalizar certas decisões, que para as discutir ou decidir. O poder mais significativo que o Colégio Cardinalício mantém é o de eleger o Papa, prerrogativa que se reduz à escolha de uma pessoa, mas que, indiretamente, pode comportar a opção de uma linha de pontificado. Dada porém a total autonomia que o eleito goza, essa determinação torna-se relativa.
Em suma, o serviço de um cardeal é aconselhar e coadjuvar o Papa (e até representá-lo nalgumas missões significativas) no governo da Igreja Universal na solicitude por todas as Igrejas.
2015.02.01 – Louro de Carvalho

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