quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O XLIX Dia Mundial da Paz sob o signo do Jubileu da Misericórdia


Depois, de enunciar a verdade de que “Deus não é indiferente; importa-Lhe a humanidade! Deus não a abandona!”, Francisco, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2016 (a um de janeiro), assinada no passado dia 8 de dezembro, 50.º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II, inauguração do Jubileu Extraordinário da Misericórdia e Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, confia as suas reflexões sobre a paz à intercessão da “Mãe solícita pelas necessidades da humanidade”. Ela nos obterá “de seu Filho Jesus, Príncipe da Paz, a satisfação das nossas súplicas e a bênção do nosso compromisso diário por um mundo fraterno e solidário”.

E, na linha do imperativo “vence a indiferença e conquista a paz”, o Papa acalenta a esperança de que o novo ano nos veja “firme e confiadamente empenhados” na realização da justiça e no trabalho pela paz, a qual é simultaneamente “dom de Deus e trabalho dos homens”.

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Depois, passa em revista várias temáticas pertinentes: conservação das razões da esperança; formas de indiferença; ameaça à paz pela indiferença globalizada; conversão do coração pela passagem da indiferença à misericórdia; fomento da cultura de solidariedade e de misericórdia; e a paz enquanto fruto dessa cultura.

Conservar as razões da esperança. Apesar de o ano de 2015 ter sido caraterizado por guerras e atos terroristas, com as “trágicas consequências” de sequestro de pessoas, perseguições por motivos étnicos ou religiosos, prevaricações, a ponto de o cenário “assumir os contornos” de “terceira guerra mundial por pedaços”, vários acontecimentos impelem “a não perder a esperança na capacidade que o homem tem, com a graça de Deus, de superar o mal, não se rendendo à resignação nem à indiferença”. De entre tais acontecimentos, destaca-se a Cop21, na procura de “novos caminhos para enfrentar as alterações climáticas e salvaguardar o bem-estar da terra, a nossa casa comum” – a que se juntam: a Cimeira de Adis-Abeba, “para arrecadação de fundos destinados ao desenvolvimento sustentável do mundo”; e “a adoção, por parte das Nações Unidas, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”.

A nível eclesial, salienta-se o cinquentenário da publicação de dois documentos do Vaticano II conexos com o sentido de diálogo e de solidariedade da Igreja com o mundo – a Nostra Aetate e a Gaudium et Spes, “expressões emblemáticas da nova relação de diálogo, solidariedade e convivência que a Igreja pretendia introduzir no interior da humanidade”.

Sendo variadas “as razões para crer na capacidade que a humanidade tem de agir, conjunta e solidariamente”, apostando na interligação e interdependência e prestando atenção aos membros mais frágeis e à salvaguarda do bem comum, emerge a atitude de solidária corresponsabilidade, que está na raiz da vocação fundamental do homem à fraternidade e à vida comum.

Formas de indiferença. Do cariz comportamental do indivíduo indiferente, a postura da indiferença passou à dimensão global, gerando o fenómeno da “globalização da indiferença”.

Pela indiferença para com Deus, de que deriva a indiferença para com o próximo e a criação, o homem, julgando-se o autor de si mesmo, da sua vida e da vida da sociedade, sente-se autossuficiente e visa, ocupando o lugar de Deus, prescindir d’Ele. Já a indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem encare a boa informação disponível “de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição”, sem envolvimento nos dramas da humanidade ou atribuindo aos outros as culpas de tudo o que se passa. Outros manifestam a sua indiferença na “falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante”. Nestes casos e noutros similares, a indiferença provoca o fechamento e o desinteresse, acabando por contribuir para a falta de paz com Deus, com o próximo e com a criação.

A paz ameaçada pela indiferença globalizada. A indiferença para com Deus ultrapassa a esfera do individuo e afeta a “esfera pública e social”. Com efeito, sem abertura ao transcendente, o homem torna-se presa do relativismo e tem dificuldade em agir de acordo com a justiça e em se comprometer pela paz. A nível individual e comunitário, a indiferença para com os demais – “filha da indiferença para com Deus” – gera inércia e apatia e alimenta a persistência de situações de injustiça e desequilíbrio social, de que resultam os conflitos ou o clima de descontentamento “que ameaça desembocar (…) em violências e insegurança”. E, quando atinge o nível institucional, a indiferença pelo outro, sua dignidade, seus direitos fundamentais e sua liberdade, a par da cultura orientada para o lucro e hedonismo, favorece e justifica ações e políticas ameaçadoras da paz. Por sua vez, “a indiferença pelo ambiente natural, favorecendo o desflorestamento, a poluição e as catástrofes naturais que desenraízam comunidades inteiras do seu ambiente de vida, constrangendo-as à precariedade e à insegurança”, cria novas pobrezas e situações de injustiça de consequências desastrosas “em termos de segurança e paz social”.

Da indiferença à misericórdia: a conversão do coração.  

A indiferença induziu Caim a dizer que não sabia o que acontecera ao irmão, assegurando que “não é o seu guardião”. É-lhe indiferente o irmão, a sua vida e destino, apesar de ambos estarem ligados pela origem comum. Ao invés, Deus não é indiferente: o sangue de Abel tem valor a seus olhos e dele pede contas a Caim. Deus revela-Se, pois, “desde o início da humanidade, como Aquele que se interessa pelo destino do homem”. Tanto assim é que, ao ver os filhos de Israel na escravidão do Egito, intervém junto de Moisés: “Eu vi a opressão do meu povo no Egito e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores (…). Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel” (Ex 3,7-8). Deus, longe da indiferença, “observa, ouve, conhece, desce, liberta” – ou seja, delibera e age.

De igual modo, em seu Filho Jesus, “Deus desceu ao meio dos homens, encarnou e mostrou-Se solidário com a humanidade em tudo, exceto no pecado”. Jesus não se contentava em ensinar as multidões, mas preocupava-Se com elas, sobretudo quando as via famintas (cf Mc 6,34-44) ou sem trabalho (cf Mt 20,3). Na parábola do bom samaritano (cf Lc 10,29-37), censura a omissão de ajuda em necessidade urgente do semelhante e convida os ouvintes, e em especial os discípulos, a aprenderem a parar junto dos sofrimentos deste mundo para os aliviar, sem a procura de pretextos rituais e/ou ocupacionais.

A este respeito o Papa recorda que “a misericórdia é o coração de Deus”, pelo que “deve ser também o coração de todos aqueles que se reconhecem membros da única grande família dos seus filhos”. E, por conseguinte, “é determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia”, na linguagem e nos gestos.

Fomento da cultura de solidariedade e misericórdia contra a indiferença. A solidariedade, configurando uma virtude moral e um comportamento social, que é fruto da conversão pessoal, “requer empenho por parte da multiplicidade de pessoas que detêm responsabilidades de caráter educativo e formativo”. Antes de mais, vêm as famílias, chamadas a uma missão educativa primária e imprescindível, as quais constituem “o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro” e são “o espaço privilegiado para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos”. Depois, vêm “os educadores e formadores, que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil”, que “devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa”. E têm responsabilidades específicas também os agentes culturais e dos meios de comunicação social no atinente à educação e à formação, “especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação” – pelo que devem, primeiro que tudo, “colocar-se ao serviço da verdade” e “vigiar por que seja sempre lícito, jurídica e moralmente, o modo como se obtêm e divulgam as informações”.

A paz, fruto da cultura de solidariedade, misericórdia e compaixão. Conscientes da ameaça da globalização da indiferença, não podemos deixar de reconhecer as “numerosas iniciativas e ações positivas que testemunham a compaixão, a misericórdia e a solidariedade de que o homem é capaz”. A título de exemplo, o Pontífice destaca:

- As “muitas organizações não-governamentais e grupos sociocaritativos, dentro da Igreja e fora dela, cujos membros, por ocasião de epidemias, calamidades ou conflitos armados, enfrentam fadigas e perigos para cuidar dos feridos e doentes e para sepultar os mortos”;
- As “pessoas e as associações que socorrem os emigrantes que atravessam desertos e sulcam mares à procura de melhores condições de vida”;
- Os “jornalistas e fotógrafos, que informam a opinião pública sobre as situações difíceis que interpelam as consciências”;
- Aqueles “que se comprometem na defesa dos direitos humanos, em particular os direitos das minorias étnicas e religiosas, dos povos indígenas, das mulheres e das crianças, e de quantos vivem em condições de maior vulnerabilidade”, entre os quais se contam “muitos sacerdotes e missionários que permanecem junto dos fiéis e os apoiam sem olhar a perigos e adversidades, em particular durante os conflitos armados”.
- As famílias que, “no meio de inúmeras dificuldades laborais e sociais, se esforçam concretamente, à custa de muitos sacrifícios, por educar os seus filhos a contracorrente nos valores da solidariedade, da compaixão e da fraternidade”; 
- As famílias, paróquias, comunidades religiosas, mosteiros e santuários “que abrem os seus corações e as suas casas a quem está necessitado, como os refugiados e os emigrantes”;
- Os “jovens que se unem para realizar projetos de solidariedade e todos aqueles que abrem as suas mãos para ajudar o próximo necessitado nas suas cidades, no seu país ou noutras regiões do mundo;
- E todos “aqueles que estão empenhados em ações deste género, mesmo sem gozar de publicidade: a sua fome e sede de justiça serão saciadas, a sua misericórdia far-lhes-á encontrar misericórdia e, como obreiros da paz, serão chamados filhos de Deus” (cf Mt 5,6-9).

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Em suma:

No espírito do jubileu

O espírito do Jubileu levará cada um ao reconhecimento das manifestações da indiferença na sua vida e à adoção de um compromisso concreto para melhorar a sua realidade, “a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho”.

Por seu turno, os Estados são devedores de “gestos concretos, atos corajosos a bem das pessoas mais frágeis da sociedade”. Assim:

- Quanto aos reclusos, urge a adoção de medidas de melhoria da vida nas prisões, com maior atenção “aos que estão privados da liberdade à espera de julgamento” e com vista à “finalidade reabilitativa” da pena” e à inserção nas leis de penas alternativas ao encarceramento. Por outro lado, impõe-se a abolição da pena de morte e recomendam-se as amnistias possíveis.

- Em relação aos migrantes, o Papa convida os Estados a repensarem as leis sobre as migrações, com vista à hospitalidade, “no respeito pelos recíprocos deveres e responsabilidades”, e à integração dos migrantes. Nesta linha, dever-se-á prestar especial atenção às condições de concessão de residência aos migrantes, na convicção de que à clandestinidade vem inerente o risco da criminalidade.

- No atinente aos que sofrem pela falta de trabalho, terra e teto, “os líderes dos Estados” devem realizar “gestos concretos” em prol destes irmãos, de que ressalta “a criação de empregos dignos” para obviar à “chaga social do desemprego”, lesiva de “um grande número de famílias e de jovens” com gravíssimas consequências “no bom andamento da sociedade inteira”. Afeta gravemente “o sentido de dignidade e de esperança” a falta de trabalho, a qual só parcialmente é compensada pelos subsídios para os desempregados e suas famílias. Merecem atenção especial as mulheres – “ainda discriminadas, infelizmente, no campo laboral” – e algumas categorias de trabalhadores, em condições “precárias ou perigosas” e com salários não adequados “à importância da sua missão social”.

- No respeitante aos doentes, Francisco apela “à realização de ações eficazes” para a melhoria das suas condições de vida, “garantindo a todos o acesso aos cuidados sanitários e aos medicamentos indispensáveis para a vida”, incluindo o tratamento domiciliário.

- Quanto à atividade diplomática, os líderes dos Estados devem renovar as relações com os demais povos, facilitando a efetiva participação de todos no debate e decisão das grandes questões e gerando a inclusão na vida da comunidade internacional, “para que se realize a fraternidade também dentro da família das nações”. Neste sentido, o Papa formula um tríplice apelo:

. À abstenção “de arrastar os outros povos para conflitos ou guerras que destroem não só as suas riquezas materiais, culturais e sociais, mas também a sua integridade moral e espiritual”;

. Ao cancelamento ou gestão sustentável da dívida internacional dos Estados mais pobres; e

. À adoção de políticas de cooperação que, em vez da submissão à ditadura dalgumas ideologias, sejam respeitadoras dos valores das populações locais e, de maneira nenhuma, lesem o direito fundamental e inalienável dos nascituros à vida.

2015.12.29 – Louro de Carvalho

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