sexta-feira, 10 de abril de 2015

Reportagem - Cardeal Maradiaga: “É preciso acrescentar lugares à mesa”

Reportagem - Cardeal Maradiaga: “É preciso acrescentar lugares à mesa”
À mesa do café Arcada, no centro de Fafe, o cardeal Óscar Rodriguez Maradiaga lembrou: “Todos estamos convidados à mesa. Não é preciso excluir ninguém, mas antes ir acrescentando lugares à mesa.”
A afirmação surgiu num dos momentos altos do primeiro dia do Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade. A iniciativa do Município de Fafe, editorial Novembro e Observatório para a Liberdade Religiosa prolonga-se até sábado, na cidade, com homenagens a duas personalidades e duas organizações: o cardeal Maradiaga, Maria de Jesus Barroso, a Amnistia Internacional e os Médicos do Mundo.
Óscar Maradiaga, que preside à Caritas Internationalis e coordena o grupo de nove cardeais conselheiros do Papa Francisco, utilizou a imagem da mesa para falar de economia e da exclusão que ela tem provocado em tantos lugares do mundo – também em Portugal. “A austeridade é uma palavra pouco querida na Europa. A austeridade não é um mal, é uma virtude. Mas se for entendida apenas como ajustes de macroeconomia, deve ser recusada, porque ajusta a macroeconomia mas produz mais pobreza.” E, parafraseando uma frase de Jesus, acrescentou: “A economia é para o homem e não o homem para a economia.”
O problema, hoje, disse o cardeal hondurenho, é que se “excluiu a ética da economia”. Mas a ética “deve estar em toda a vida humana”. E deve estar no âmago da vida de cada pessoa, de modo a responder a duas perguntas: “Quem sou eu? Para que existo ou com que fim utilizo a minha existência?”
Numa espécie de entrevista ao vivo, conduzida pelo director da TSF, Paulo Baldaia, o cardeal captou a atenção de mais de uma centena de pessoas que, apesar da chuva, enchiam por completo a sala do café e o espaço da esplanada. Maradiaga, que esta noite será homenageado no Teatro Cinema, depois de já ter também inaugurado o “Caminho das Causas”, começou por recordar que a Revolução Francesa proclamou a trilogia liberdade, igualdade, fraternidade. Mas há uma parte do mundo que quer liberdade sem igualdade e outros querem liberdade sem fraternidade, avisou. “A fraternidade quer dizer que somos todos filhos de um mesmo pai”, acrescentou.
Numa das instalações incluídas no Caminho das Causas, vários cartazes em plástico transparente recordavam dados sobre a pobreza, a desigualdade ou as guerras: “A comida deitada fora num ano nos EUA e Europa poderia alimentar três vezes a população mundial durante esse tempo”; “A nível mundial, há 121 milhões de crianças e adolescentes que não frequentam a escola”... E numa das portas do Caminho, lia-se: “Ao fechar esta porta, fica a saber que 230 mil pessoas perdem anualmente a vida na guerra.”
“Temos um sistema que desenvolveu o liberalismo económico mas não traz igualdade, antes acrescenta desigualdade”, afirmou o cardeal.
Perante este quadro, então, qual é o papel da Igreja e dos crentes, perguntava Paulo Baldaia. “O baptismo não é uma poção mágica”, respondia o cardeal, insistindo na importância de os católicos crescerem“na fé e na coerência de vida”. O princípio geral da política “tem de ser o bem comum e jesus quer que sejamos irmãos”, defendeu. E, na política, ser católico deve ser sinónimo de mais responsabilidade: “Se temos governantes católicos, ele tem de pensar que não pode só pensar nos seus interesses ou nos do partido, mas nos de toda a população.”
Também a questão ecológica é cara ao presidente da Caritas Internationalis. O homem, como rei da criação, “não a pode tiranizar, mas deve ser o seu administrador”. Se, pelo contrário, se pensa que que se pode ser “abusador da criação”, estaremos a criar problemas ecológicos e ambientais graves. Por isso a Cáritas Internacional fala em “justiça com a criação”.

Fafe, terra justa, por uma Terra mais justa


“Centralizar em Fafe esta ideia de reflexão sobre justiça”, com o duplo sentido de Fafe como “terra justa” na defesa de uma Terra mais justa foi o horizonte que norteou a ideia da iniciativa que, até sábado, mobilizará conversas de café, conferências, debates, homenagens e exposições.
“Tomámos a ideia de Fafe como uma terra de grande apego à justiça para provocar a discussão, trazer as pessoas para a rua, fazer conversas de café, teatro de rua, conferências e debates”, diz o presidente da Câmara Municipal, Raul Cunha. “Não vamos mudar o mundo, mas pretendemos dar um pequeno contributo para que as pessoas interiorizem os valores da justiça.”
Para Raul Cunha, a tradição da “justiça da Fafe”, perpetuada na estátua que se encontra na Praça Maximino de Matos, foi “durante muito tempo vista como justiceira”. Mas ela “encerra o sentimento de uma justiça justa, como valor.” Por isso, “é de justiça que falamos, é de justiça que falaremos nestes quatros dias” da primeira edição da Terra Justa. “Trata-se de colocar Fafe na discussão de valores, com a justiça no centro”.
Já na recepção da manhã, no salão nobre da Câmara Municipal, o cardeal Maradiaga referira a importância de trabalhar pela justiça. “Não vivemos num mundo justo e sem justiça não podemos ter paz.” Mas também não se pode “separar caridade e justiça”.
Na saudação de boas-vindas a Óscar Maradiaga, o presidente da Câmara afirmou que se trata de agir: “Agir para alterar este estado de coisas, ajudando a mudar uma economia mundial baseada no poder do dinheiro e no primado das finanças, que coloca as pessoas em segundo plano, mas também e desde logo, agir no concreto e de imediato, para aliviar os sofrimentos de todos aqueles que hoje mesmo passam grandes necessidades e carências.”
De acção se falou também na primeira conversa de café. De manhã, o South Africa também já se enchera com público de diferentes gerações para escutar Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, e Fernando Ventura, frade capuchinho e co-autor do livro Somos Pobres Mas Somos Muitos.
“O que está a acontecer é um parto difícil de um tempo novo que está a nascer”, disse Eugénio Fonseca, que se confessou não muito esperançoso, mas realista, ao dizer que “a crise ainda não passou”. O presidente da Cáritas, que tem criticado as políticas de austeridade dos últimos anos, defendeu a ideia de que “a solidariedade é intrínseca à condição do ser humano” e que “dependemos forçosamente uns dos outros: o inferno é o desejo de poder, de ter, de possuir e não de partilhar, e as condições que se criam e levam as pessoas a autodefender-se”.
Fernando Ventura acrescentou: “Os pobres dão de comer a muita gente; se os fundos de combate à pobreza fossem usados para esse efeito, metade do problema estaria resolvido.”
O frade capuchinho referiu-se ao que chamou como a “revolução dos não-violentos”, citando a Associação Alma MaterArtis, que apoia mil crianças de São Tomé e Príncipe. Mil adolescentes e jovens de escolas da Maia já garantiram mochilas, copos de leite diários, livros de aritmética e gramáticas escritos à mão para as crianças de São Tomé. E os jovens portugueses, que não têm um fim-de-semana livre, “no último ano lectivo, tiveram 100% de êxito escolar”.
Eugénio Fonseca tomou o mesmo mote para avisar: “O primeiro papel dos pobres é não se resignarem. Passámos décadas a gerir a pobreza de muitos mas não os libertámos da pobreza.” E, recordando uma história pessoal, quando quis “dar conselhos a uma jovem mãe que lhe apareceu maquilhada e a pedir ajuda, acrescentou: “Devemos conseguir que sejam os pobres a definir os seus projectos de vida. Os ataques que fizemos ao Rendimento Social de Inserção são inadmissíveise hoje há gente que não quer receber pela acusação de subsidiodependência”. Para concluir: “Lutemos contra a pobreza e não contra os pobres. Ninguém é pobre porque quer.”


António Marujo, aqui

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