JUBILEU,
O PAÍS DA
VIDA AGRACIADA
1. Aproximação à leitura e interpretação da Bíblia
Não se deve ceder à tentação fácil de procurar na Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento, respostas feitas ou receitas rápidas para as nossas perguntas ou problemas de hoje. A Bíblia não é um prontuário para acudir aos problemas avulsos do nosso quotidiano. A Bíblia responde às perguntas e resolve os problemas que surgiam na época em que foram escritos os livros nela contidos. Não se deve, todavia, concluir que ler a Bíblia resulta então um exercício inútil ou ultrapassado, pelo que não valeria então a pena lê-la hoje. Uma tal conclusão seria contrária à preciosa escrita de S. Paulo, que nos adverte que «Todas as coisas que foram escritas no passado, foi para nossa instrução (didaskalía) que foram escritas» (Rm 15,4). Todavia, para compreendermos a sua mensagem, importa ver como os autores dos livros bíblicos respondem aos problemas da sua época. É tendo em conta esse modo de proceder, que podemos nós também encontrar as respostas adequadas a problemas semelhantes que se nos deparam nos dias de hoje. Para que o exercício de leitura da Bíblia seja proveitoso, o leitor de hoje, que folheia a Bíblia hoje, deve ter em conta alguns princípios fundamentais de interpretação:
1.1. Lei da precedência ou antiguidade
Segundo a chamada «lei da precedência» ou da «antiguidade», as coisas que tinham mais valor eram as antigas. Concretizando: Israel nasce como povo no Sinai, com a Lei de Moisés e o culto do Santuário móvel do deserto. É no sopé do Sinai que, pela primeira vez, o povo de Israel pronuncia em uníssono o pronome pessoal «nós»:
«19,8Tudo o que o SENHOR falou, nós o faremos» (Ex 19,8).
A monarquia davídica e o Templo de Salomão vêm muito depois. Significa isto que pode cair a monarquia e o Templo (como sucede no ano 586 a.C.), que as traves-mestras de Israel, colocadas no Sinai, não são por isso afetadas, pois estão fora e são anteriores a essas realidades. É nesse sentido, que a Carta aos Hebreus enxertará o sacerdócio de Cristo em Melquisedec (Hb 6,20; 7,17), e não em Levi, porque, entre outras razões, Melquisedec é anterior a Levi. E também o conhecido dito de Jesus, em disputa com os judeus, que se afirmam «filhos de Abraão» (cf. Jo 8,33.39): «Antes que Abraão existisse, Eu Sou» (Jo 8,58). É por este caminho que, segundo o relato dito «sacerdotal», sigla P, a aliança com Abraão e Noé superam em importância a do Sinai. E é também por este caminho que se chegará ao Deus Criador e à Criação, em que todas as criaturas são beneficiárias do dom de Deus, que a todos dá o alimento (Gn 1,29-30). Acentuação fundamental: o alimento é fruto da terra e dom de Deus, e não é fruto da terra e do trabalho do homem. Em suma, tudo quanto existe, no tempo e no modo, depende de Deus.
1.2. Lei da conservação
A chamada «lei da conservação» é uma consequência da anterior. Relembramos: se, biblicamente falando, o que é antigo tem muito valor, então não se pode deitá-lo fora. De onde: se uma tradição é antiga será conservada, ainda que venha a ser superada por não ser mais aplicável. A sociedade antiga em geral e, em particular, a sociedade bíblica antiga, é fundamentalmente conservadora. Não deita nada para o caixote do lixo. Não tem caixote do lixo. Não se elimina nada. Corrige-se e interpreta-se. O exemplo que chama mais a atenção é, talvez, a existência de três códigos de leis: o Código da Aliança (Ex 20,22-23,19), o Código do Deuteronómio (Dt 12-26), que se apresenta como uma revisão do Código da Aliança, e o Código de Santidade (Lv 17-26), que continua este trabalho de reinterpretação e atualização. A Bíblia quis conservar estes três Códigos e muitas outras leis, mesmo que, por vezes, entrem em conflito umas com as outras. Base fundamental: todas as leis foram promulgadas pelo mesmo Senhor no mesmo monte Sinai e transmitidas pelo mesmo Moisés. Assim, foram conservadas duas versões da aliança com Abraão (Gn 15 e Gn 17), dois relatos da Criação (Gn 1,1-2,4a e 2,4b-3,24), três versões do episódio da mulher/irmã (Gn 12,10-20; Gn 20; Gn 26,1-14), sendo que a segunda (Gn 20) é por todos considerada uma edição revista e corrigida da primeira (Gn 12,10-20). Contudo, continuamos a encontrar na Bíblia a primeira versão. Na nossa maneira de ver, teria sido perfeitamente lógico que a segunda substituísse a primeira.
1.3. Lei da continuidade e atualização
A chamada «lei da continuidade e atualização» faz-nos ver que, se é verdade que o mundo bíblico antigo é conservador, é igualmente verdade que a tradição conserva apenas o que tem valor para o presente. Assim, se é verdade que se deseja manter uma ponte com o passado remoto, pretende-se igualmente mostrar que as tradições conservam o seu valor para o presente. Isto é, Israel não conservou as suas antigas tradições para poderem ser mais tarde visitadas e admiradas nas vitrinas de um museu.
O interesse pelo passado tem sempre a ver com as preocupações do presente. Uma passagem do Livro do Deuteronómio, ao introduzir o relato da teofania do Sinai, mostra bem esta ambivalência:
«5,3Não foi com os nossos pais que o Senhor fez esta aliança, mas connosco, que estamos hoje aqui todos vivos» (Dt 5,3).
Seja qual for a identidade dos «pais» aqui referidos e daqueles que se expressam na primeira pessoa do plural («nós»), a intenção do texto não deixa dúvidas: a aliança não é coisa do passado, mas do presente. A predileção do Deuteronómio pelo vocábulo «hoje», que usa mais de 70 vezes, é um dos numerosos indícios da sua vontade de «atualização». Esta preocupação pelo valor do passado vem ao de cima também em muitos textos do chamado «Segundo Isaías» (Is 40-55). Diz uma passagem bem conhecida:
«43,18Não recordeis as coisas do passado, não penseis nas coisas de antes, 19pois Eu vou fazer uma coisa nova; eis que ela já desponta: não vos apercebeis?» (Is 43,18-19).
A ideia que atravessa esta passagem parece, à primeira vista, contradizer o que já dissemos atrás acerca do grande valor das coisas do passado. Mas aqui o problema em equação é outro: trata-se de combater a grande tentação do Israel pós exílico, que era a nostalgia de um passado grandioso, mas sem qualquer incidência no presente. É assim que, quando em 520 a.C., são lançados os alicerces do novo Templo, muitos sacerdotes, levitas e chefes de família já idosos e que tinham visto o primeiro Templo, destruído em 586 a.C., choravam em alta voz (Esd 3,11-12). E olhando para o passado, Sião diz:
«49,14O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim» (Is 49,14).
De forma clara: a fé de Israel era vista como coisa do passado. Agora, depois do exílio, já não se vê Deus a agir. Nem sequer a sua casa, o seu Templo, Deus foi capaz de defender. A fé neste Deus tornou-se fútil ou inútil. Para atacar esta tentação e esta nostalgia, a Bíblia teve de encontrar novos caminhos, que mostrassem Deus em ação nas novas condições em que Israel vivia. Aparecem então numerosas adições tardias tendentes a acordar o mecanismo preguiçoso dos textos de ontem, tornando a Palavra de Deus ativa e atuante também hoje. A reinterpretação das leis, a que já nos referimos, com Códigos novos, é disso um sinal evidente. Era preciso que o direito respondesse a situações novas como, por exemplo, o que diz respeito aos escravos, aos empréstimos com usura e à celebração das festas. A vontade de atualizar é agora uma constante e nota-se no aparecimento de novas versões, longas adições ou mesmo em ínfimos detalhes.
No que respeita aos escravos, o Código da Aliança permite que haja escravos israelitas, com a condição de serem libertados no ano sabático (Ex 21,2), o mesmo acontecendo com o Código do Deuteronómio (Dt 15,12), coisa que o Código de Santidade proíbe radicalmente (Lv 25,42), sugerindo, no entanto, que se dê a mão a um israelita necessitado, não o admitindo como escravo, mas como trabalhador residente (sakîr tôshab TM; misthôtòs pároikos LXX) (Lv 25,39-40). O Código de Santidade aceita apenas escravos estrangeiros (nokrîm) provenientes de nações pagãs (meʼet hagôim) (Lv 25,44), que são vistos de forma diferente dos estrangeiros que residem no meio de vós (gerîm), e que Israel deve «amar como a si mesmo» (Lv 19,34), tal como o seu próximo (Lv 19,18).
No tocante aos empréstimos com usura, o Código da Aliança proíbe o empréstimo de dinheiro com usura ao israelita pobre (ʽanî) (Ex 22,24). O Código do Deuteronómio radicaliza a interdição do empréstimo de dinheiro com usura entre Israelitas em geral, não fazendo distinção de condição social (Dt 15,1-2; 23,20.21b). Autoriza-o, todavia, para um «estrangeiro» não integrado na vida de Israel (nokrî) (Dt 15,3; 23,21a). A mesma interdição radical, a que acresce ainda uma chamada à caridade para com o irmão israelita, pode ver-se no Código de Santidade (Lv 25,35-38). Os juros de então podiam subir a 20% ou mais sobre o dinheiro e entre 33% e 60% sobre o trigo e o grão em geral.
Os detalhes também se fazem sentir, e aparecem nos chamados «textos recarregados». Lemos, por exemplo, em Gn 18,6:
«18,6Abraão correu para a tenda, para junto de Sara, e disse: “Toma depressa três medidas de farinha (qemah), de flor de farinha (solet), amassa-as e faz pães cozidos”» (Gn 18,6).
O texto citado pode levar-nos a dizer que, na leitura dos textos bíblicos é precisa toda a atenção, pois, por vezes, Deus se encontra nos detalhes. Provavelmente acrescentou-se apenas uma palavra para dar ao texto um colorido ligeiramente diferente. Abraão pede a Sara que prepare pães para os seus três convidados, e diz-lhe que vá buscar três medidas de farinha (qemah). À palavra «farinha», um redator posterior juntou outra palavra mais precisa, «flor de farinha» (solet). Trata-se de uma redundância. Uma das duas palavras hebraicas está a mais. A segunda palavra, solet, que aparece sobretudo nas leis cultuais (Ex 29,2.40), é seguramente secundária, mas pretende dizer que a farinha utilizada devia ser a que se utilizava no culto, querendo com este detalhe dizer que Deus se encontrava entre os três convidados! Com o acrescento redacional referido, o relato apresenta Abração como um fiel cumpridor das leis cultuais pós exílicas, tornando-se assim, para os leitores dessa época, um modelo a imitar (cf. 18,19; 22,18; 26,5).
1.4. Lei da economia: só se escreve o necessário
Dificilmente alguém se apercebe hoje-em-dia da dificuldade prática que era escrever no mundo antigo. Poucas pessoas sabiam escrever, poucas tinham tempo para o fazer, e escasseava o dinheiro para adquirir o material necessário, que era caro. A escrita era, claro está, manual. A título de exemplo, para escrever a Tôrah ou Pentateuco, que são os cinco Livros conhecidos por Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio, um escriba precisaria de mais ou menos um ano, e era necessário coser umas sessenta e duas peles de animais. Um manuscrito desta ordem ficaria hoje por largas dezenas de milhares de euros. Escrever um rolo era coisa ao alcance de muito poucos, demorava muito tempo e era muito dispendioso. Tinha de se aproveitar, na prática, todo o espaço disponível, reduzindo ao mínimo as margens e também o espaço entre linhas. Significa isto que só a partir dos séculos VIII e VII a.C. estariam reunidas em Israel, sobretudo na Samaria e em Jerusalém, as condições económicas necessárias para permitir um certo desenvolvimento da atividade literária. Mais ou menos quando surgem os primeiros profetas escritores, como Amós e Oseias, no Norte, e Isaías e Miqueias, no Sul.
O texto bíblico mais antigo até hoje descoberto em Israel encontra-se em dois pequenos cilindros de prata encontrados em 1979 no vale de Gehinnom, em Jerusalém, junto da igreja escocesa de Santo André. Datam de finais do séc. VII ou princípios do séc. VI, e contêm as bênçãos sacerdotais de Nm 6,24-26.
1.5. Lei da transformação da vida
Este apartado diz respeito sobretudo à forma como um crente deve ler e interpretar os textos bíblicos. É claro que o texto bíblico passa muita informação, muita e diversificada, de teor onomástico, toponímico, histórico, geográfico, político, religioso, litúrgico, cultual, literário, cultural, social, cosmológico, antropológico, pedagógico, teológico, etc. Podemos dizer que a Bíblia é uma verdadeira biblioteca e que os seus saberes e sabores são verdadeiramente enciclopédicos. Em suma, a Bíblia transmite muita informação e presta-se a diversos tipos de formação. A informação e a formação são valências que a Bíblia transporta. Mas não podemos hoje descurar o acicate performativo da leitura da Bíblia, ou seja, não podemos esquecer que a leitura crente da Bíblia pode servir sobretudo para transformar, envolver e revolver desde dentro a vida do seu visitante, orante, leitor ou ouvinte.
2. Viver nos tempos bíblicos
Como sucede com todas as leis, também as leis relativas ao Jubileu visavam responder a problemas concretos. Não se promulga uma lei que não seja para mudar determinadas situações ou resolver problemas emergentes. Por que razão as leis enunciadas em Lv 25 vão no sentido de deixar os campos em pousio, restituir campos e casas aos seus proprietários de origem, libertar os escravos e ajudar economicamente os indigentes? Trata-se, com certeza, de procurar responder a uma situação endémica concreta. Vendo mais de perto, a sociedade bíblica, semelhante em muitos aspetos a numerosas sociedades contemporâneas, sobretudo ao que hoje denominamos «Terceiro Mundo», encontra-se maioritariamente constituída por pessoas que lutam pela sobrevivência. Há quem diga que nos tempos bíblicos 90% das pessoas viviam abaixo do limiar da pobreza. No mundo hodierno, mais de 780 milhões de pessoas, sobretudo na Ásia meridional e na África subsariana, vivem abaixo do limiar da pobreza, ou seja, com menos de 1,90 dólares por dia. Neste tipo de mundo, as pessoas consideravam-se cheias de sorte se não morressem de fome ou de doença.
Quer isto dizer que o equilíbrio económico era muito instável. Era preciso pouca coisa para que uma família caísse na miséria: uma má colheita, uma fome, uma doença no gado, uma guerra, uma mudança económica repentina, um endividamento. Em condições hostis como estas, tornava-se necessário comprar comida ou pedir um crédito com juros elevadíssimos. Para comprar, era necessário endividar-se. Para pagar as dívidas, tornava-se necessário vender os poucos bens que se possuíam: a casa, os campos, a própria liberdade, isto é, em última análise, vender os próprios filhos e as mulheres como escravos, e, nas situações mais radicais, até o chefe de família tinha de se vender também. Este estado de coisas pode chegar a uma situação insustentável de extrema miséria material e humana, a que só os mais ricos podiam fazer frente. É sintomática e elucidativa a maldição pronunciada por Deus através do profeta Isaías:
«5,8Ai dos que juntam casa a casa, campo a campo, até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos residentes no interior da terra» (Is 5,8).
E depois do Exílio, a situação continua a sangrar e a mostrar marcas miseráveis, como se pode ver neste texto de Neemias:
3. A função do ano jubilar
É aqui que se podem entender as leis do Jubileu, que se celebrava de cinquenta em cinquenta anos. Por razões metodológicas, é conveniente, todavia, começar pelo ano sabático, que se celebrava de sete em sete anos, e era uma instituição mais antiga do que o Jubileu e também mais bem conhecida. A sua primeira formulação encontra-se em Ex 23,10-11, que transcrevemos:
«23,10Durante seis anos semearás a tua terra e colherás o seu produto. 11No sétimo ano, porém, deixá-la-ás em pousio, e não a cultivarás; comerão dela os pobres do teu povo, e o que restar servirá de pasto aos animais do campo. Farás do mesmo modo com a tua vinha e com o teu olival» (Ex 23,10-11).
A este texto fazemos seguir o texto do Lv 25,1-7:
«25,1O Senhor falou a Moisés no monte Sinai, dizendo: 2“Fala aos Israelitas e diz-lhes: Quando entrardes na terra que Eu estou para vos dar, a terra repousará um sábado para o Senhor. 3Durante seis anos semearás o teu campo e podarás a tua vinha, e recolherás o produto. 4Mas no sétimo ano, haverá um repouso absoluto para a terra, um sábado para o Senhor: não semearás o teu campo nem podarás a tua vinha; 5não ceifarás as espigas que crescerem espontaneamente no campo, e não vindimarás as uvas da vinha não podada. Será um ano de repouso completo para a terra. 6O que a terra produzir durante o seu repouso servirá de alimento a ti, ao teu escravo, à tua escrava, ao teu empregado e aos estrangeiros (gerîm) que habitam contigo. 7Também aos teus animais e aos animais selvagens da tua terra servirá de alimento o seu produto» (Lv 25,1-7).
Tenha-se em consideração a nota carregada de humanidade de aos animais do campo, referidos em Ex 23,11, o texto do Lv 25,7 acrescentar os animais selvagens.
Vale a pena olhar também para os problemas que o sétimo ano, ano sabático, pode levantar numa sociedade que se dedica quase unicamente aos produtos de primeira necessidade:
«25,20Se disserdes: “Que comeremos no sétimo ano, se não semearmos e não recolhermos os nossos produtos?” 21Eu disporei a minha bênção para vós no sexto ano, e nele recolhereis para três anos. 22No oitavo ano, semeareis e comereis dos produtos antigos até ao nono ano. Comereis da colheita antiga até que venha a colheita desse ano» (Lv 25,20-22).
A resposta encontrada para o ano sabático é semelhante à que já tinha sido encontrada no deserto, em contexto narrativo (Ex 16,22-30), para o dia de sábado. No sexto ano, Deus dará uma colheita abundante, que chegará para três anos, tal como em relação ao sétimo dia, sábado, no sexto dia Deus «dará o pão para dois dias» (Ex 16,29).
Voltando ao ano sabático, a celebrar de sete em sete anos, os campos ficarão em pousio. Por duas razões:
1) A primeira é de ordem agrícola e económica. As técnicas agrícolas estavam pouco desenvolvidas na época em que esta lei foi redigida. Os adubos naturais eram escassos e os artificiais nem sequer existiam. Os instrumentos de trabalho eram rudimentares. Arados, grades, tratores e outros utensílios modernos, que permitem trabalhar a terra em profundidade, são invenções recentes. Apenas se podia contar com a tração animal a cargo do burro ou do boi. A maior parte dos trabalhos eram manuais. A terra tornava-se dura e, depois de se ter cultivado as mesmas terras durante vários anos para produzirem os mesmos produtos, os rendimentos diminuíam. A única solução era deixar descansar a terra pelo menos durante um ano. Os camponeses deixavam os campos em pousio, para que se pudessem refazer e retomar a fertilidade. Mais tarde, na Idade Média, os monges descobriram a alternância trienal: no primeiro ano, cultivavam-se cereais, no segundo, feno, e, no terceiro, deixava-se a terra em pousio.
2) A segunda é de ordem teológica. O povo da Bíblia tinha no pensamento que a terra e a sua fertilidade vinham de Deus. Portanto, para que a terra conservasse ou recuperasse a sua fertilidade, era necessário entregá-la a Deus. O modo mais usual de realizar este intento era fazer com que a terra voltasse ao estado em que se encontrava antes de começar a ser cultivada. Daí, o pousio. O facto de se começar a adotar este procedimento de sete em sete anos tem a ver com o caráter sagrado do número sete quer na Bíblia quer na Mesopotâmia. A ninguém passará despercebida a importância do 7.º dia, do 7.º ano, do 7.º mês.
As leis sobre o Jubileu inserem-se nas do ano sabático. Na verdade, o Jubileu é um ano sabático elevado ao «quadrado», contando-se, para o efeito, sete vezes sete anos mais um. Há, todavia, quem pense que o Jubileu se celebrava cada 49 anos. A razão seria evitar que a terra estivesse em pousio dois anos seguidos, o ano 49 e o ano 50, o primeiro, sabático, e o segundo, jubilar. Dois anos seguidos de pousio acarretariam, com certeza, imensas dificuldades de sobrevivência às populações.
3.1. Diferença entre o Próximo Oriente Antigo e o Jubileu bíblico
Em todo o Próximo Oriente Antigo existiam leis semelhantes. Na Mesopotâmia, por exemplo, era habitual que os reis, sobretudo quando subiam ao trono, proclamassem uma espécie de amnistia geral. Era assim que alcançavam a liberdade as pessoas que tinham sido forçadas a vender-se como escravos para pagar as suas dívidas. Esta amnistia dava popularidade ao rei, mas também ajudava a relançar a economia. A lei bíblica do Jubileu cai fora destes decretos mesopotâmicos, sobretudo em dois pontos essenciais: 1) as medidas não são tomadas por um rei, não estando pendentes, portanto, de uma circunstância especial, como o início de um reinado, da vontade ou da estratégia política de um soberano; são, antes, proclamadas por Deus, sendo por isso subtraídas à vontade humana; 2) as leis do Jubileu entram em vigor de cinquenta em cinquenta anos, e não derivam de oportunidades ou de circunstâncias especiais. Como em todo o Próximo Oriente Antigo, também as leis do jubileu bíblico defendem um sistema de valores contra abusos e desequilíbrios económicos e humanos que ferem gravemente a sociedade. O Jubileu bíblico mostra com mais clareza que em Israel há dois valores fundamentais e inalienáveis, uma vez que é o próprio Deus, e não uma autoridade humana, que assume a sua defesa. Estes dois valores são a terra, enquanto propriedade familiar, e a família.
4. A importância da terra e da família
4.1. A importância da terra
Em primeiro lugar a terra. De acordo com o relato bíblico do Livro de Josué (13-21), quando o povo chega à terra prometida e depois dada por Deus, Josué procede à repartição da terra pelas tribos, clãs e famílias. Cada tribo, cada clã e cada família recebe uma porção da terra de acordo com o número de pessoas a alimentar (Js 13-21; cf. Nm 26,53-54). Pouco importa, no atual contexto, quando e como se fez esta repartição. O importante é compreender a intenção do relato. A terra é dada por Deus, não por Josué ou por um chefe carismático ou político. Israel não se apoderou da terra por sua própria iniciativa ou porque o tenha conseguido fazer pelas suas próprias forças. Se Deus, o Senhor que fez Israel sair do Egito, não tivesse intervindo para o libertar, e não o tivesse alimentado no deserto, o povo nunca teria podido entrar na terra para a conquistar. Cada família possui, portanto, uma porção da Terra e recebe-a unicamente de Deus.
Vale aqui o fortíssimo dizer de Deus, enunciado em Lv 25,23, que aqui transcrevemos:
«25,23A terra não será vendida perpetuamente, porque a terra é minha, e vós sois para mim estrangeiros residentes e hóspedes (gerîm wetôshabîm TM; prosêlytoi kaì pároikoi LXX)» (Lv 25,23).
Em termos jurídicos, significa isto que a terra é inalienável. Se foi o próprio Deus a dá-la, que poder humano se pode apropriar dela? Esta verdade sai bem ilustrada pelo relato da vinha de Nabot (1 Rs 21). O rei de Israel, Acab, como muitos grandes proprietários, quer aumentar as suas posses. Decide então comprar o terreno de Nabot, contíguo ao seu. Oferece-lhe em troca dinheiro ou dar-lhe outro terreno ainda melhor. Mas Nabot recusa a proposta, o que o levará à morte, como se pode ler no referido relato.
Por que é que Nabot recusa vender o seu terreno ou trocá-lo por um melhor? Ele mesmo adianta as suas razões nestes termos:
«21,3Deus me livre (halîlah lî YHWH) de te ceder a herança (nahalah) dos meus antepassados!» (1 Rs 21,3).
Nabot começa a frase com uma fórmula de juramento, a qual, neste contexto, é mais do que uma simples fórmula. Ele recebeu a sua terra de Deus, o Senhor, e é em virtude deste direito «divino», se assim se pode dizer, que Nabot recusa vender a sua vinha, que é inalienável, e não assiste a Nabot o direito de renunciar a este terreno que ele recebeu dos seus «pais» e que – e está aqui o ponto mais importante – ele deve, por sua vez, transmitir aos seus descendentes. Esta vinha é intocável, e nem sequer o rei pode abrir uma exceção a este direito imprescritível. O direito à terra, fundamental em Israel, visava impedir que a família perdesse os recursos necessários à sua sobrevivência. Num mundo em que uma grande parte da população se dedicava à produção de bens de primeira necessidade, isto é, à pequena agricultura e à pequena criação de gado, é normal que o direito assegure a cada família a posse de uma porção de terra indispensável à sua subsistência. Uma família, uma terra. É este, segundo a Bíblia, o ideal que presidiu ao dom da terra. Quando uma família tem de vender os seus terrenos de cultivo, está aí o primeiro passo para a escravatura, como mostra a engrenagem descrita em Lv 25,25-55: venda da terra, endividamento, escravatura.
Mas não se trata apenas de valores económicos e sociais. Está em causa todo o tecido familiar e afetivo das relações de parentesco com os «pais». Trata-se do apego afetivo ao lugar da sepultura dos «pais». Se a terra passar para um terceiro, é o desrespeito e abandono das pessoas de uma família que aí foram inumadas! Através da terra, o laço afetivo que liga uma família às gerações precedentes liga-a, de forma definitiva, à geração daqueles que receberam a terra e a repartiram, e, através deles, aos patriarcas que receberam as promessas.
Abre assim a legislação relativa ao ano jubilar:
«25,8Contarás sete semanas de anos, isto é, sete vezes sete anos. Estas sete semanas de anos farão um período de quarenta e nove anos. 9No décimo dia do sétimo mês, tu farás passar um shôfar de aclamação (terûՙah); no yôm-kippûr, vós fareis passar um shôfar em toda a vossa terra. 10Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis a libertação (derôr TM; áphesis LXX) para todos os residentes (tôshabîm) no país. Será para vós um jubileu (yôbel). Cada um de vós voltará para a sua propriedade (ʼahuzzah) e para a sua família (mishpahah). 11O quinquagésimo ano será para vós um jubileu (yôbel). Não semeareis nem ceifareis nada do que os campos produzirem espontaneamente, nem vindimareis as vinhas não podadas (nezirîm), 12pois é o jubileu (yôbel), e será santo para vós. Podeis, porém, comer os frutos do campo. 13Neste ano do jubileu (yôbel), cada um voltará para a sua propriedade (ʼahuzzah). 14Quando venderdes alguma coisa a alguém do vosso povo ou quando comprardes alguma coisa a alguém do vosso povo, que ninguém explore o seu irmão. 15Segundo o número dos anos a seguir ao jubileu, comprarás a alguém do teu povo, e segundo o número dos anos das colheitas, ele estabelecerá o preço da venda. 16Quanto maior for o número dos anos de colheita, mais alto será o preço; quanto menor for o número dos anos, mais baixo será o preço, porque ele vende-te o número das colheitas. 17Nenhum de vós explore alguém do seu povo, mas temerás o teu Deus, porque Eu sou o Senhor, vosso Deus» (Lv 25,8-17).
Qual é a novidade do jubileu em relação ao ano sabático? Com o regresso de cada um à sua propriedade (Lv 25,10), isto é, à propriedade dos seus antepassados (Lv 25,41), a novidade do Jubileu é, com certeza, a redistribuição das terras por todos, segundo a vontade do proprietário divino. Que tudo isto seja feito ao som do shôfar, transporta ainda o sentido novo do regresso dos exilados à Terra Prometida (Is 27,13).
4.2. A importância da família
Falou-se até aqui de tribos, clãs e famílias, e não de pessoas singularmente consideradas, porque no mundo bíblico é quase impensável falar de pessoas singulares sem ligação à família ou ao clã. Uma pessoa sozinha é uma pessoa indefesa e corre o risco de ficar exposta a diferentes formas de exploração. Em um mundo que desconhece o Estado assistencial, a segurança social e o Estado de direito, ninguém pode viver sozinho. Uma pessoa nasce, cresce e morre no seio de uma família, sem a qual não pode subsistir. Claro que a família de que aqui se trata é a família alargada que inclui todos os descendentes, filhos e netos de um casal. Em uma sociedade patriarcal, como a da Bíblia, os filhos mantêm-se submetidos aos seus pais, ao pai em particular, enquanto viver, e todos formam a família. Nada tem a ver com a família nuclear do nosso mundo ocidental (um casal e os seus filhos), mas da família alargada em que convivem várias gerações, muitas vezes debaixo do mesmo teto, e sempre sob a autoridade do «pai de família», que é quase sempre um avô. Em suma, é difícil na Bíblia falar do ser humano ou da pessoa sem usar o plural. A existência humana é essencialmente existência coletiva ou comunitária. As leis bíblicas do Jubileu pressupõem esta conceção da vida humana. Pretendem, por isso, proteger a família e impedir que se disperse ou debilite. Vai nesse sentido a lei muito restritiva do casamento, como podemos ver no Livro dos Números:
«36,7A herança dos Israelitas não passará de uma tribo a outra; os Israelitas permanecerão vinculados cada um à herança da sua tribo. 8Uma filha que possua uma herança em uma das tribos de Israel deve casar-se com alguém de um clã da sua tribo paterna, de modo que os Israelitas conservem cada um a herança do seu pai. 9Uma herança não poderá ser transferida de uma tribo para outra: cada uma das tribos dos Israelitas permanecerá vinculada à sua herança» (Nm 36,7-9).
Se a família desaparecesse, era a existência do povo que estava em perigo. O problema assume, por isso, particular gravidade, e, por esta razão, é o próprio Deus que protege a família. Em termos jurídicos, esta situação implica que a família é subtraída à autoridade humana; é sagrada, e pertence apenas a Deus.
5. Viver em jubileu
E já que de jubileu se trata, vou abrir e estender diante de todos o texto do Livro do Levítico 25,9, um único versículo, em que se lê:
Penso que são de todos conhecidos os diferentes ingredientes contidos no texto. O shôfar é o corno do carneiro ou do cabrito-montês, que emite um som cavo, fundo e intenso, e que é usado, no mundo bíblico, para marcar o tempo e o modo, abrindo e fechando o tempo religioso, o sábado, as festas, o ano sabático, o ano jubilar, as teofanias, as chamadas «guerras de YHWH», convocando para o «Dia de YHWH» ou para o «Último Dia» (cf. Is 27,13; Jl 2,1; Mt 24,31; 1 Cor 15,52; 1 Ts 4,16). O terûՙah é um som sem palavras e sem sílabas, um rumor intenso com que o povo assinala a presença vitoriosa e providente de Deus. O sétimo mês é o mês de tishrî, um mês festivo por excelência, pois coincide com o tempo das colheitas. Abre com a festa do Ano Novo (rôsh ha-shanah), tem no dia 10 a festa do yôm-kippûr, no dia 15 a festa das Tendas, que se prolonga por oito dias, e fecha com a festa da «Alegria da Lei» (simhat-tôrah). Lembro que o ano sabático se iniciava no final da Festa das Tendas, e terminava um ano depois com a Festa das Tendas. O ano jubilar tinha o seu início na festa do yôm-kippûr do 49.º ano e fechava um ano depois com a festa das Tendas do 50.º ano.
Elenquei e expliquei as principais ferramentas que integram o texto. E, todavia, não explicitei o que penso ser a mensagem do texto, isto é, aquele acicate contido no texto, com que o texto nos atinge, nos explica e nos implica. Digo-o agora. Lembro que o texto é muito curto, um só versículo. Começa com: «tu farás passar um shôfar», e termina com: «vós fareis passar um shôfar». Não sei se isto vos diz alguma coisa. Trata-se da mesma expressão repetida, com uma pequena, grande diferença: a passagem do «tu» para o «vós»: «Tu farás passar um shôfar»; «vós fareis passar um shôfar». Poder-se-á argumentar que a mudança resulta do estilo muito bíblico que encontramos muitas vezes na elaboração das leis no corpo do Pentateuco, sobretudo no Livro do Deuteronómio. O argumento não colhe neste lugar, dado que se trata da mesma expressão, palavra por palavra. Dizem outros que é fruto da distração de algum copista. Mas eu prefiro pensar e dizer que esta mudança do «tu» para o «vós» é intencional! E se isto for verdade, então é precisamente esta passagem do shôfar que opera a extraordinária operação da passagem do «tu» para o «vós», de uma simples soma ou ajuntamento de indivíduos para um povo que encontra a sua identidade e unidade. No nosso caso, meus irmãos e irmãs da família da nossa Diocese de Lamego, tratar-se-á da extraordinária operação de passagem de não sei quantos indivíduos para uma verdadeira família diocesana. Voltando a ler o texto, ficamos com a impressão de uma verdadeira procissão que vai atravessando o território de Israel ou da nossa Diocese de Lamego, povoação a povoação, paróquia a paróquia, e, à medida que vai passando, vai engrossando e congregando todas as pessoas que encontra, mais ou menos à semelhança de quem entra numa farândola, que é uma antiga dança provençal executada de mãos dadas.
6. A partir da esperança
Como se não bastasse já a riqueza dos quadros expostos, o Papa Francisco achou por bem trazer para a cena deste Jubileu Ordinário 2025 a temática da Esperança em Peregrinação, fazendo deste Jubileu uma festa de peregrinação. A Bíblia apresenta-nos três festas de peregrinação: a Páscoa, as Semanas ou Pentecostes e as Tendas. Uma FESTA, na Bíblia, é sempre um encontro marcado (môʽed) com Deus e com os irmãos. Sendo um encontro marcado com Deus e com os irmãos, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade.
E se a FESTA é de Peregrinação, como são a PÁSCOA, as SEMANAS ou PENTECOSTES e as TENDAS, então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais marcantes e intensas, dado que FESTA de PEREGRINAÇÃO se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E hag deriva de hûg, que significa círculo, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida. Portanto, alegria, alegres no Jubileu, alegres na Esperança. A formulação deste «alegres na esperança» é, como se sabe, devedora a Rm 12,12. Face ao exposto, podemos desde já perguntar qual das duas peças do binómio, a alegria ou a esperança, pesa mais no respetivo prato da balança? Não sei o que pensa cada um. Mas sei o que pensa São Paulo, que usa, para o efeito, a locução grega «tê elpídi chaírontes», que facilmente podemos decompor, analisar e recompor. Chaírontes é o particípio presente do verbo chaírô [= «alegrar-se»], e convida a uma atitude permanente de alegria, como é próprio de um particípio presente. Tê elpídi, ensina a exegese, é um dativo de causa, que nos impõe a tradução: «Por causa da esperança». A tradução do binómio «tê elpídi chaírontes» soará, pois: «Por causa da esperança, vivei na alegria». O conhecido exegeta Simon Légasse escreveu assim, comentando o referido binómio: «Esperança e alegria estão lado-a-lado, e a primeira faz brotar a segunda». A esperança deve ser, portanto, a nossa aposta, pois é ela a causa da alegria, o poço de onde pode transbordar a alegria. Mas a esperança é também o suporte da fé, pois a fé é a «fé da esperança» (pístis elpídos), a fé que brota da esperança, na extraordinária lição de Ben Sira 49,10. Todavia, a esperança é frágil, frágil-forte, é como um sonho (cf. Jeremias 31,26), que não nos leva a construir de baixo para cima, mas de cima para baixo, desde o cume, desde Deus, como gosta de dizer Agostinho, de além do país da meia-noite, como refere Jeremias 31,8.
7. Esperança firme, que não engana
No mundo grego, esperança diz-se elpís, e tem o significado de «previsão», «lícita expetativa», sempre assente nos nossos calculismos e exercícios racionais, pequenas deduções, tanto quanto nos permite saber o velho livro das leis da natureza. Fora da tradição hebraico-cristã, não existe a ideia de futuro e de esperança, sendo o futuro sempre a reprodução do já acontecido (eterno retorno), e a esperança sempre espera vã, uma vez que todos os acontecimentos, da alegria à dor e às próprias escolhas feitas, tudo está já inscrito na vontade redonda dos deuses, na natureza ou na roda do destino. E é sabido que «a natureza não pode propriamente dar; só a liberdade o pode fazer». A esperança não floresce no horizonte da necessidade. Num tal contexto, só o trágico é possível, e, no trágico, esperar não passa de uma suposição enganadora e falsa, como declara Prometeu na tragédia de Ésquilo:
CORO: Nos dons concedidos aos mortais, não foste, porventura, longe demais?
PROMETEU: Sim, impedi os humanos de prever o seu destino mortal.
CORO: Que tipo de remédio encontraste para esta doença?
PROMETEU: Pus neles esperanças cegas.
De forma diferente da esperança grega que, como diz Ésquilo, é cega, porque piedosamente enganadora, a esperança bíblica e cristã não engana (Rm 5,5) nem acaba já ali, é sem medida, tem a ver com o nunca antes visto, aponta para além das leis da natureza, está em luta aberta contra as evidências. Trata-se de «esperar contra a esperança (humana)» (par’ elpída ep’ elpídi) (Rm 4,18), «contra a evidência». É assim que Paulo define a atitude crente de Abraão. No mundo hebraico e bíblico, esperança diz-se tiqwah, e deriva de qaw, que pode significar «fio», «fita métrica», «cordel para medir». Percebe-se que tem a ver com o «fio» que se estica para medir, até chegar à medida ainda sem medida e sem solução à vista – «esperança vista não é esperança» (Rm 8,24) –, mas que tem solução recebida de Deus, do cume, de além do país da meia-noite. É como o «fio», a «corda», o «arame», a «linha», a «pauta musical» estendida entre a dor e a consolação esperada, entre a humanidade e Deus, fio tenso, não abaulado – veja-se Job 7,6: «Os meus dias correm mais depressa do que a lançadeira, e consomem-se sem esperança», e Abraão dito por Paulo em Rm 4,20: «Não ficou abaulado na incredulidade [e desconfiança] (apistía)» –, mas seguro entre duas mãos, a mão de Deus e a nossa mão. Única maneira de se poder atravessar, com segurança e confiança, o vau da vida e da morte.
Paulo transfere esta imagem do «fio» ou da «corda» para o mundo criado e para o homem, criatura dileta de Deus, e coloca-os nesta tensão esperante através do recurso ao nome apokaradokía (Rm 8,19; Fl 1,20), de apó + kára + dokéô [= fora de + cara (rosto) + esperar/olhar atentamente] que só ele usa no NT, e que é desconhecido no grego antes do Cristianismo. Apokaradokía traduz a atitude de quem se coloca em bicos de pés, alongando o pescoço o mais que pode, com ânsia extrema e intensa, para tentar ver o que ainda não se vê – assim se apanha o tique da esperança, dita tiqwah –, atitude muito próxima da traduzida por apekdéchomai (Rm 8,25), de apó-ek-déchomai [= fora de + desde + receber], que implica uma forte conotação de receção, tensão para receber a salvação de Deus, tensão para o dom, pois um dom, não o podemos produzir aqui, com as nossas mãos; só o podemos receber desde fora, de outras mãos. A esperança bíblica e cristã consiste na dupla atitude amante de estarmos sempre à espera de alguém, e de sabermos bem que Alguém espera por nós. Espera não vazia, mas grávida de realização e de confiança: «espera que contém a presença, pergunta que contém a resposta, esperança que contém o cumprimento» (Karl Barth).
Tem razão São Paulo quando lembra aos cristãos de Éfeso que, antes de serem encontrados por Cristo, viviam «sem esperança e sem Deus no mundo» (Ef 2,12). Vale a pena ler, neste contexto, a Carta Encíclica Spe salvi [= «Salvos na esperança»], de Bento XVI, de 30 de novembro de 2007. Bento XVI glosa este dito de São Paulo, que cita amiúde (vejam-se os números 2, 3, 23,27, 44), e acentua que sem Deus no mundo, não há esperança.
8. Dar a razão da esperança
São Pedro interpela-nos a estar sempre prontos, atentos, preparados (hétoimoi) para dar a quem nos pedir o pão da esperança ou a razão da esperança que há em nós (lógon [perì] tês [en hymîn] elpídos) (cf. 1 Pd 3,15). O pão e a razão (lógos) são dados concretos, não teóricos e abstratos. A razão (lógos) não é aqui um terreno intelectual ou um objeto do pensamento, mas uma pessoa: Jesus Cristo. Sim, é Ele a razão, o lógos, «pelo qual tudo foi feito, e sem Ele nada foi feito» (Jo 1,3). Então, Ele habita e enche o universo inteiro e a nossa vida toda. «É n’Ele que vivemos, nos movemos e existimos» (At 17,28). Nós com Ele, e Ele em nós, santuários vivos do Deus vivo. De forma intensa, como sempre, grita São Paulo aos ouvidos dos cristãos de Corinto e aos nossos: «Não sabeis que sois Templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? (…). Na verdade, o Templo de Deus é santo, e esse Templo sois vós!» (1 Cor 3,16 e 17). Sem equívocos agora: estar prontos a dar a razão (lógos) da esperança é estar prontos a dar Jesus Cristo, é estar prontos a dar a mão, isto é, compreensão, amor e confiança, engenheiros de um mundo novo, verdadeiro, credível, transparente. Dar a esperança é dar Jesus. E invoco Maria, Mãe de Deus, no seu belo título de (Theotókos Hodighítria), Mãe de Deus, que segura Jesus com uma mão, e com a outra aponta para Ele, que é o Caminho. Mãe de Deus, que indica o Caminho.
9. Indicações conclusivas
Caríssimos irmãos e irmãs, o Jubileu é uma mesa com uma toalha cheia de pão e de graça, perdão e libertação, que Deus estende diante de nós para nos encontrarmos em família e festa, saboreando os dons que Ele nos dá: a vida, o alimento, o tempo… O Jubileu tem, pois, Deus por sujeito de Bem, de Bondade e de Júbilo, que quer renovar a nossa vida e enchê-la de esperança.
1. O anúncio do Ano Jubilar pelo som do shôfar, que pedagogicamente passa do «tu» para o «vós», de «tu farás passar um shôfar» para «vós fareis passar um shôfar» (Lv 25,9), deve constituir um imenso e inadiável desafio ao abandono de individualismos vários e à formação e afirmação das comunidades familiar, paroquial, diocesana e eclesial.
2. Em termos funcionais: o Jubileu é a experiência inolvidável de um som, de uma música, de uma festa, que se inicia em um lugar determinado e se vai movimentando, atravessando o espaço paroquial, arciprestal ou diocesano, engrossando sempre pelo caminho, de modo a reunir todos, e que todos se sintam irmanados à volta da mesa do amor de Deus. Cabe aqui também o sentido da peregrinação, que traduz a nossa vida terrena, e deve estar sempre presente.
3. Uma ou muitas grandes celebrações festivas e penitenciais que provoquem em nós uma grande libertação das amarras do nosso «eu». É a libertação concreta (derôr) das amarras do nosso sacrossanto «eu», que se verifica também através do sacramento do perdão (áphesis). O perdão dos pecados é a concretização da libertação jubilosa do Jubileu. De notar que onde o texto hebraico tem «libertação» (derôr), o texto grego tem habitualmente áphesis, libertação do pecado, isto é, perdão e renovação da vida.
4. Vimos em importantes páginas bíblicas acabadas de visitar que as famílias do antigo povo de Israel tinham grande relutância em vender os seus campos, porque necessitavam deles para a sua subsistência, mas sobretudo porque sabiam que os seus «pais» os tinham recebido de Deus, e também porque neles estavam sepultados os seus antepassados. Significa isto que o Jubileu é um tempo de graça, dado por Deus, para nos alegrarmos e renovarmos a nossa vida, mas também para visitarmos com afeto os nossos cemitérios, onde estão sepultados os nossos familiares que adormeceram em Cristo, e por eles rezarmos, e reforçarmos a nossa fé na comunhão dos santos e na vida eterna. E não deixemos de recorrer à Indulgência Jubilar com a qual podem ser agraciados aqueles nossos irmãos que nos precederam.
5. O Jubileu que Deus nos dá é também uma oportunidade para nos compreendermos sobre esta terra, não como donos e senhores, mas como estrangeiros e hóspedes (pároikoi), agraciados por Deus, que o mesmo é compreender que é Deus o Senhor de todos, e a todos faz graça.
A todos os meus irmãos e irmãs da Diocese de Lamego desejo um santo Jubileu com uma grande chuva de graças e bênçãos para todos.
Lamego, 18 de outubro de 2024, festa litúrgica de São Lucas, evangelista
+ António, vosso bispo e irmão